Esporos

aquilo que não aconteceu enche-me de assombro apenas pela possibilidade de vir a ser

e aquilo que foi são perfurações internas, cobertas pela poeira dos dias, que às vezes sangram ao esbarrar de uma palavra.

queria que a razão pudesse guiar-me como as estrelas ao navegante

mas meu céu é recoberto de chumbo, onde impera o abismo vacilante das nuvens.

e tal qual um arebesco parido de Dante

trinta mil braços morenos arrancam-te do meu frágil seio

levam teu riso, gozo, cantares

e ponho-me a chorar como a primeira alma que, emudecida, fitou os portões negros do inferno.

assim lanço-me aos devaneios do cianureto e do vitríolo,

alarmada em como um apanhado de tecido celular é capaz de doer tanto, em sua perfeição microscópica

e em como o amor é análogo ao Ophiocordyceps: resplandece, puro e multicor, na carcaça apodrecida de meu corpo

para completar o ciclo profano da natureza

que em desafio à graça que me foi dada de amar

trouxe-me o outro gume da faca, os esporos inocentes

que hão de arrebatar-me toda a inocência idealizada.

Zéfiro Alves
Enviado por Zéfiro Alves em 09/10/2019
Código do texto: T6764762
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.