Esporos
aquilo que não aconteceu enche-me de assombro apenas pela possibilidade de vir a ser
e aquilo que foi são perfurações internas, cobertas pela poeira dos dias, que às vezes sangram ao esbarrar de uma palavra.
queria que a razão pudesse guiar-me como as estrelas ao navegante
mas meu céu é recoberto de chumbo, onde impera o abismo vacilante das nuvens.
e tal qual um arebesco parido de Dante
trinta mil braços morenos arrancam-te do meu frágil seio
levam teu riso, gozo, cantares
e ponho-me a chorar como a primeira alma que, emudecida, fitou os portões negros do inferno.
assim lanço-me aos devaneios do cianureto e do vitríolo,
alarmada em como um apanhado de tecido celular é capaz de doer tanto, em sua perfeição microscópica
e em como o amor é análogo ao Ophiocordyceps: resplandece, puro e multicor, na carcaça apodrecida de meu corpo
para completar o ciclo profano da natureza
que em desafio à graça que me foi dada de amar
trouxe-me o outro gume da faca, os esporos inocentes
que hão de arrebatar-me toda a inocência idealizada.