AMOR ATO VINTE

Beije-me nesta emergência de ouros vermelhos

de botões soltos em fluxo de amor prateado.

Eu seguro tua camisa azul quando ela escorre por meus braços

Não tenho ideia, o instante é o que deve ser amado.

Olhos brancos não podem pensar em censuras.

Mostrarei meus lábios adocicados por roçar tua boca

e saber da tua morte, árvore caída sobre meus ombros

mas a minha mão entra em ti e pensa em curas.

Vou esquecer tudo, lembro apenas do meu toque.

Cinco dedos e meu tato percebem a recompensa,

a fresta de ti em uma selva imensa.

O tempo presente é um grande descampado

Correm crianças e pelo dia estendido sinto alívio,

O sol traz a gravidade da sua luz para nosso convívio.

Marília ainda era estagiária em enfermagem quando um rapaz esfaqueado e inconsciente entrou na emergência do Hospital Santa Luzia em Fortaleza. O médico examinou a vítima, o corte fora aberto na altura do estômago; tomou alguns cuidados e pediu à Marília as seguintes providências: colocar a luva cirúrgica e introduzir lentamente a sua mão direita dentro do ferimento do rapaz. Marília, julgando iniciar algum tratamento, obedeceu ao homem, introduziu lentamente a sua mão no estômago da vítima, mas quando estava no meio do caminho, dentro do corte, ela sentiu, devagar, as últimas batidas do coração do paciente. Marília puxou a mão e gritou. Soltou um grito enorme e ouviu a risada do médico titular, por coincidência também o seu professor na Faculdade de Enfermagem.

O mestre ordenara a providência da introdução da mão no abdômen do rapaz esfaqueado, não como uma tentativa de salvação do paciente, já condenado, mas para Marília sair do estágio, tornar-se uma profissional enfermeira que conhece e sabe relativizar a hora da morte. Enfermeiras devem adquirir a noção do efêmero.

Marília também começou a chorar. Chorou muito, junto com os familiares do rapaz, que morreu logo depois. Marília chorou porque percebeu também: sua mão dentro dos restos mortais não tinha sido apenas uma aula prática. Marília se sentiu unida ao corpo do jovem e tudo - o ferimento, a luva cirúrgica, o coração do paciente, o coração de Marília - pareceu uma fileira de dominós em queda, retida ali entre seus dedos.

Marília lembrou deste fato como a ocorrência mais marcante de uma carreira de cinquenta anos. Tão marcante para confessar a sua única irmã:

- Eu nunca me casei, mas algo em mim continua tão ligado ao tal homem quanto naquele dia.

Grandes são as coincidências neste mundo. Sábado, dia 23, Marília faleceu por causa de uma úlcera.

Marília tinha setenta anos. Deixa uma irmã, também enfermeira e um sobrinho.

Apenas a irmã entendeu o pretexto amoroso da úlcera de Marília.

Paulo Fontenelle de Araujo
Enviado por Paulo Fontenelle de Araujo em 04/06/2019
Reeditado em 14/06/2019
Código do texto: T6664434
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