CANTO PARA JANET LEIGH

Os deuses avisam que as musas

nunca morrem. O seu estado etéreo

coloca-as sobre a morte na antecâmara

da memória em movimento. Não vivem

o ofício funéreo, supera-as a visão

de uma viagem, pelo infinito absoluto,

onde a música das cordilheiras as poupa

na profundeza das suas águas torturadas,

numa imensa voragem, magnífica, louca,

das suas lucubrações incendiadas.

Serão as divas de carne e osso? Serão capazes

do grito? Terão nas mãos o pólen dourado

que alimenta as estrelas do universo?

O que oculta o brilho dos seus olhos

no escuro dos recantos solitários da terra?

Como andarão com seus pés de espuma

por sobre as plantas do jardim? De que cor

serão as suas asas de fada, os seus lábios

matinais, os sublimes esgares das plateias

nos bastidores dos novos coliseus?

Como se rebolarão em nuvens pelos céus?

No bailado das aranhas tecendo

o emaranhado líquido das suas teias?

Amando? Sofrendo?

No altar de Hitchcock foste a aparição.

Ele disse num sussurro acção Janet

e tu nada viste para além da cortina.

Nós éramos o sangue molhando a lâmina

da faca, o chuveiro o mundo horrorizado,

solidário contigo para que sobrevivesses.

E as musas não morrem, avisavam os deuses.

Nós ficámos então descansados, vejo-o agora;

acabamos por descobrir, distraidamente,

num noticiário televisivo,

como tudo era fumo, uma mentira.

As musas morrem.

Muito embora, só às vezes.

José António Gonçalves

(inédito.05.10.04)

JAG
Enviado por JAG em 02/11/2005
Código do texto: T66400