Do navio à senzala

Vou contar-lhes uma história

De um amor poliango

De um sonho trazido

No fundo de um navio

Onde um amor surgiu

Em meio a dores e chibatas

Amor correspondido

De um negrinho franzino

Pela negra donzela rainha

De uma província vizinha

De onde foram arrancados

E a negrinha também gostou

Do negrinho franzininho

A quem apelidou de engraçadinho

Por ser o mais feio do navio

Desembarcados em outra terra

Marcados como bois importados

Trazia o negrinho no peito

Uma alegria e um ardor

Por ser aquele amor

Tão correspondido no barco

E separados tão logo

Foram levados a longínquos lares

De gente desconhecida

E de santos em altares

O negrinho pra senzala foi levado

E como um potro recém domado

Foi tirado de seus direitos

De liberdade e opiniões

E apanhava sem porque saber

Como um corcel indomado

Porém o negrinho ressabiado

Sabia o que fazer

Mesmo assim sem opções ter

Apanhava noite e dia

Mas a dor nem castigava

Pois nos olhos ele levava

A imagem meiga da sua rainha

Que tão breve encontrara

E tão breve perderia

E apanhava o negrinho no troco

Quando sem saber por quê

Foi chamado a casa grande

Para buscar tão distante

A filha do seu sinhô

Recebeu uma só regra para cumprir

Não olhar nem sequer sorrir

Para a filha do sinhô

Ou para a escava que vinha junto

Para a “pobre” sinhazinha

Sozinha não viajar

Foi pela estrada

Sozinho a pensar

-Que diacho vou falar

Se nem conheço a tal escrava

Nem sequer essa sinhá desgraçada

Que me fez sair da senzala

E assim seguiu caminho

Sempre lembrando a regra

De nem sequer a cabeça erguer

Nem um lábio mexer

Para a tal sinhá e sua escrava

Quão grande surpresa teria

Ao ver que acompanhava a donzela sinhá

Sua escrava rainha

E nem um breve sorriso

Ou um pequeno esboço tímido

Poderia ele soltar

Levou as duas pra fazenda

Alegre e temeroso

Que faço eu- pensou sozinho-

Se tão perto da minha amada

Nem ao menos posso tocá-la

E a negrinha sorriu

Quando o negro franzino

De nervos e risos finos

Mal cabia em alegria

Por seu amor reencontrar

A negrinha foi pra casa grande

E negro pra senzala voltou

E de noite apanhou

Por demorar pela estrada

Mas como seria rápido?

Mal se agüenta em si

E o negrinho apanhava

E pela janela da casa

A negrinha deixava

Uma lagrima rolar

Passou o tempo

E sempre lá estava

A negrinha molhada

De uma triste lagrima

Na janela a rolar

Sequer uma palavra

Os dois trocavam

Apenas olhares marcados

Com a marca da escravidão

E com o tempo

O sinhô da casa grande

Virou os olhos pra negrinha

Com pensamentos obscenos

Levou a negrinha pra cama

Foi a primeira vez da mucama

Que guardava na magia de um sonho

O tal momento ao seu amor

Foi também do negrinho

A maior dor

Que pela primeira vez não veria

Sua amada rainha

Na janela a lhe mirar

Custou mas sorriu de novo

A ver na madruga clara

Sua negrinha machucada

E em lagrimas molhada

Por ser uma escrava

Que nada podia fazer

O negrinho em raiva

Jurou que ainda matava

Aquele maldito sinhô

Que do seu amor abusou

E o seu sonho massacrou

Mas a negrinha falava

Que de nada servira

Pois outro sinhô viria

E poderia ser pior

Mas o negrinho em raiva

Mal sequer ouvia e escrava

Que pela primeira vez lhe falara

E negrinha dizia

Deixa que assim ocorra

Meu coração é teu

Acaso queres que eu morra

Se matar o sinhô

Irás junto pra o caixão

A essas palavras

Com espanto o negrinho pensou

-É maior a dor de amor

Do que a dor da chibata

Ao menos a chibata vai e volta

E essa dor que parece traição

Fica cravada no meu coração-.

Voltando a negrinha pra casa

Deixou o negrinho franzino

De apelido engraçadinho

Pensativo na senzala

Ainda com grande raiva

O negrinho se acalmou

E de leve um suspiro deixou

Em uma triste manhã

De uma noite mal dormida

Mas ainda com raiva

No amanhecer do dia

De sorte o negrinho se erguia

E atacava com uma ira

O senhor que noite antes

Abusava de sua menina

Mas o negrinho era franzino

E ainda por cima mal dormido

Foi dominado pelo sinhô

E esse ainda com mais raiva

Mandou o negro pra senzala

E nem pão nem água

Ao pobrezinho servia

Caindo uma noite escura

De rancor a amargura

Levaram o negrinho pro tronco

Pensou sozinho de novo

É menor a dor da chibata

Do que desse amor que me mata

Por dentro de tanto sofrer

Mas o negrinho era fraquinho

E apanhava noite e dia

E fraco nada conseguiria

Agüentar da ira do sinhô

E dessa vez foi mais forte

Cada laço de chibatada

E em gritos horríveis

Ficava o negrinho no troco

A chorar não por dor

A eram lagrimas de um amor

Tão forte e tão perdido

E a negrinha chorava

Chorava como criança

Eram lagrimas de sangue

Lagrimas de quando morre a esperança

E o negro no tronco continuava apanhando

Até que o sinhô maldito

Viu a negrinha na janela

E querendo seu corpo

Obrigou a negrinha a deitar

E foi ainda mais forte a dor do negro

Que de tanto apanhar

Foi os olhos fechando

E neles a imagem do amor

Com um maldito sinhô a beijando

E o negrinho foi caindo

Na poça do próprio sangue

E no coração sentindo

Uma dor irrelevante

E o negro morreu no tronco

E a negrinha mais triste ainda

De dor também morria

Na cama do maldito sinhô

Nepomuceno Alves

Lavras do Sul, 16-março-2011

Nepomuceno Neto
Enviado por Nepomuceno Neto em 10/12/2018
Código do texto: T6523888
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