Tarde de vento

Tarde de vento

É o vento da nossa estação.

Ladeira abaixo, assobia, espalha brasas, pingos de chuva, pólenes tresmalhados, pétalas que voam.

É um vento hostil. Eu sei. Sei muito bem. Afia as unhas na carpete como um gato selvagem nas folhas caídas, nas cascas desgastadas dos troncos mortos da floresta húmida.

É um som surdo. Como o das unhas dos gatos nos sofás de veludo de seda, nas pernas das cadeiras de pau-rosa, nos pés das mesas de laca da China, nas minhas mãos de âmbar dos Bálticos.

Se eu soubesse donde vem o vento...

Só sei que é o vento do entardecer. Levanta as ondas, as areias da praia, as unhas dos peixes, as garras dos tanques sobre as casas de adobe dos montes sagrados... Sobre as pedras do deserto... Se eu percebesse donde vem este vento...

Mas há um outro! Um vento sem idade. Todo ele a imaginação, a liberdade, a capacidade de sonhar e dar as mãos. Um vento-brisa, vento-aragem, vento-leve, a crescer em espiral, a direito, para o alto. Vento mágico, sim, um ventinho-brisa-aragem que me toma a alma e leva por aí, turista espacial a ver tão de cima, tão do alto, que o mundo é mesmo uma bola azul, azul e púrpura, madre pérola, e jade... Quer dizer, o nosso mundo é um milagre.

...Há, de facto, vários ventos... Porque lá vem esse que arrasa as casas do deserto.

Quem pode ficar indiferente às casas desventradas, um pé aqui, uma cabeça decepada, os mortos enterrados à pressa no jardim público? É este o vento que me faz asma, bloqueia o coração num aperto sem palavras e afunda crateras à minha volta...

Se eu pudesse mandar nesses ventos de morte, mandava-os ir buscar o arco-íris. Mandava-os repetir, repetir mesmo, palavra-por-palavra, letra-a-letra – “O arco-íris é o símbolo da aliança entre Deus e os homens e as mulheres e as crianças, os jovens e os idosos”. Mas olho para as nossas mãos de granito – pouco importa –, e já lá não está, já se perdeu essa aliança de ouro...

Há um vento terrível. Sem tempo, senhor dos exércitos, também dos predadores...

... Mas ainda há jardins. Jardins de rosas. Rosas-mãos de todas as cores. Basta erguê-las no ar, e aí está o seu perfume.

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“Nós somos rubis

no meio do granito,

definhamos nesta prisão de poeira.

Por que não nos tornarmos frescos

da gentileza da primavera do coração?

Por que não espalhar

perfume

como uma rosa?”

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© Myriam Jubilot de Carvalho

(2002)

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Nota:

O poema que encerra o texto é atribuído ao poeta persa Rumi (1207-1273)

Myriam Jubilot de Carvalho
Enviado por Myriam Jubilot de Carvalho em 04/12/2018
Reeditado em 04/12/2018
Código do texto: T6518775
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