O HOMEM LIVRE
José António Gonçalves
É um relampejo de vida, obscuro
como as paredes dos quartéis e das prisões;
e é alameda que se adianta célere e labiríntica
debaixo dos meus pés de homem livre.
Os caminhos são controversos
e não conduzem a nenhum lugar; ausentes
as ambições pesam sobre os ombros
e silenciam a vontade, surda, de derrotar o mar.
Nas costas vergastadas, semeados crescem
os apelos do verde, os espinhos de lâminas
afiadas, esperando nas encruzilhadas; os muros
são invisíveis aos olhos comuns, mas doloridos no coração.
As gaivotas, em festa de cigarras e milhafres,
são os mastros das debandadas matinais; lá vão
atrás dos barcos, com o papo cheio de peixe morto
e de vento, sob o comando insólito da linha do horizonte.
São garças e partem, no seu voo em contra-luz;
parecem sós e rasam as escarpas, as ondas encapeladas
do oceano e a areia preta da praia. Só, por aqui, eu fico,
prisioneiro da minha cruz: sou um homem livre
e não sei exactamente o que fazer com isso.
Por imperativo
de consciência, sorvo a tarde.
Sei que na ilha vivo. Vivendo-a.
E, bebendo-a, desconheço
como são os contornos da liberdade.
José António Gonçalves
(inédito.23.01.05)