REPRESADO
Quantas vezes fomos setas miradas, mas jamais lançadas,
Nos sentimos espíritos represados contendo palavras prontas a serem ditas,
Poupando de arremessar a semente na terra arada,
Para evitar que a planta pudesse morrer nos excessos de uma possível chuva tempestuosa,
Mas sequer sabemos se amanhã os dias serão de sol.
Quantas vezes o coração diz que te ama, mas a garganta se faz portão de ferro,
Cujas chaves foram propositalmente perdidas,
Mas meus disfarces ficam nus perante as delações do olhar,
Talvez seja prudência demais enquanto se atravessa uma ponte de balanço,
Equilibrando o peso de querer acordar sem contabilizar os dias ao seu lado,
E os temores de não controlar esses mundos que somos nós.
Sim, a vida é uma loteria que apostamos sem saber se iremos ganhar,
Mas muito além disso, precisamos muito mais que a simples e misteriosa sorte,
Temos que lançar as sementes e manter a consciência de que os frutos não darão em nosso tempo,
Sem, contudo, largar a árvore à própria sorte,
Cuidando para não murchar em sua sede ou morrer afogada,
Para que tantas lagartas não venham a sufocar até a morte,
Mas lembrando do que dizia o Pequeno Príncipe,
Que “é preciso que eu suporte duas ou três lagartas se eu quiser conhecer as borboletas.”
Não conheço muito sobre este mundo em que habito,
E as coisas que estão sob minha pele às vezes parecem confusas,
Mas os sonhos parecem noite de natal, encenando as expectativas de boas surpresas,
O coração está feito doce na boca de quem muito provou o amargo,
A pele se drogou neste vício de querer te sentir, a respiração procura seu cheiro,
Mas palavras ainda estão represadas, sendo denunciadas em cada olhar.
Não me importarei com amanhã de modo que perca o agora,
Mas aos que me forem acrescentados, me doarei como se eu fosse a última canção do mundo,
E você a única plateia que irá escutar,
Para que os meus limites sejam meros pontos a serem liberados,
Sempre um passo a mais para conhecer os rumos de sua direção,
Para que estes caminhos se imiscuam de tal forma que não seja impossível distinguir ou separar,
E já não haja temores presos na garganta, e as palavras represadas possam desaguar.
Dizem que atrás de cada montanha existe um vale,
Onde as flores ainda insistem em florescer,
Mesmo após a cada tempestade,
Mas alguns de nós perdemos as asas,
Não sobrevoaremos mais sobre as montanhas até alcançar o vale,
Iremos caminhando, passo a passo, no interior deste mundo,
O conheceremos de perto, contemplaremos por dentro.
Quando o vale for descoberto, e todas as cores forem reveladas,
O espírito já não estará represado,
E ainda que chova, não teremos medo de nos afogar,
Lá será feito jardim secreto, templo da paz,
Onde as velhas memorias sejam apenas poeiras de um velho tempo,
Superadas nas águas tranquilas do seu olhar.