O INVENTÁRIO

Tudo que era teu é meu, eu que nunca tive nada, eu que não tinha ninguém. Guardo tudo inventariado. O que tinhas colecionado, comprado, guardado, herdado, guardo tudo que não há. Cada coisa parecia viva e tinha um bordado, um entalhe, pedraria, marca cristal bizotado. Madeira polida, madeira de lei. Madeira zelada por anos levada pelos quartos dos palácios onde reinastes. A madeira torneada da mesa mineira, as elegantes portas magras imperiais. No alto, sobre o mais alto dos guarda roupas, florais gavinhas confirmavam a realeza do sonho de um dia receber-me para fazer-te rei. Eras meu, eu de quem nem sei. Reinavas em tudo que possuías e eras meu.

Antes de ti, meu reino era pradaria estendida a perder a vista. Era aventura plana onde seguros cantavam colibris, rolinhas, pardais e bem-te-vis. Não haviam os quero-quero, não haviam as montanhas íngremes do oriente nem o degelo dos polos. Não haviam os picos por escalar nem as corredeiras geladas e selvagens que guardam os saltos mais belos e ousados do salmão. Meu reino era um serrado, ao meio dividido por córregos meninos que desciam das serras todos os dias de manhã. Eu brincava de viver sonhando ser da realeza de um condado desconhecido onde o rei assobiaria canções para todo o povo da terra e saberia guardar os talheres de prata herdados da sua mãe.

De todo o inventário, a lembrança que me acorda é um grito, um grito que sai de sobre mesa. A mesa de jantar, a mesa da varanda dentro da varanda na memória recontada que era de outra rainha e noutra história também minha. A mesa mineira da varanda construída para mim com seus dois pilares de sustentação erguendo asas punhos de Atlas e calcanhares de Aquiles, nosso sonho. Tudo que era teu era meu, tudo um sonho. A mesa posta, a mesa forrada, adornada, imponente cercada pela presença das cadeiras vazias. Tudo era e nada tenho. Ficou o nada, nada temos e tudo ainda nos pertence porque fica aqui mais do que posso inventariado. Resta a majestade do semblante e o orgulho simples de ter plantado com as próprias mãos o frescor de muitas rosas. Resta o grito que me alcança, o serrado vazio, o reino desfeito.

Hoje caminho entre rios secos, fontes esquecidas. Caminho entre árvores queimadas sobreviventes que brotam sem saber do reino, da realeza e do semblante nobre que um dia foi coberto de manto violeta. Caminho entre as serras que foram descobertas, exploradas e devastadas. Caminho à espera da chuva bendita que restitua a magia ao sonho dos enxovais gastos.

Antônio B.

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 03/11/2015
Código do texto: T5436570
Classificação de conteúdo: seguro