FLOR DE TREVO & MAIS

FLOR DE TREVO I – 6 SET 14 (Para Lígia Antunes Leivas)

Erguem-se as flores, tomadas de ansiedade,

enquanto a grama do reboco é salpicada,

à medida em que a parede é levantada

nesse terreno, roubada a antiga liberdade.

Primeiro a vala rasa, sem profundidade,

terra e argila sobre as hastes atirada,

então a pedra com cimento é enterrada,

num alicerce de completa opacidade...

Depois vêm os tijolos, em faixa horizontal,

mais altos nas esquinas, como apoio,

e vai o sol sendo apagado no quintal...

Ergue-se a casa depois, na vertical,

tirando a luz de margarida e joio,

cada flor morta e ressecada no final...

FLOR DE TREVO II

Mesmo que fique a construção adiada,

capim e flor convivem em ameaça,

nesse quadrado que a nova casa abraça,

sem vir a morte com sua foice alada...

Sobra a esperança, sempre desapontada,

traiçoeira a refletir-se em cada traço,

enquanto o teto não vem cobrir o espaço

e a luz possa ser vista enviesada...

Porque em geral, é apenas adiamento:

cedo ou mais tarde chegam carpinteiros,

cravando firme do andaime as hastes

e ali aplicam todo o seu madeiramento,

mais as telhas nos instantes derradeiros,

todas as folhas abafadas sem desbastes...

FLOR DE TREVO III

E a relva cresce, sempre esperançosa,

no interior das ruínas de Herculano

ou de Pompeia, adubada pelo arcano

vulcão, em cinza fértil mais viçosa...

E cresce grama no Fórum, que se tosa

frequentemente, por interesse humano

e nas prisões de Istambul, sofrido o dano

dos séculos, em sua marcha portentosa...

E o mesmo ocorre em qualquer outra ruína,

sobre os campos de batalha e os cemitérios:

douradas flores de dente-de-leão...

De urze e urtiga a vigorosa sina,

enraizadas para os simples refrigérios

desses insetos que vivem pelo chão...

FLOR DE TREVO IV

E entre os velhos, nos leitos de hospitais

ou em suas camas, na própria residência,

movem-se os jovens, da vida na impaciência

ou essa gente madura, a que os sinais

da própria morte, em cem avisos naturais,

tornam conscientes de sua própria decadência:

tijolos gastos, talvez por imprudência

ou pelas dores e trabalhos naturais...

Erguem-se as casas nos ossos dos antigos,

hastes recentes aguardam pelo sol,

suas cabeças erguendo o mais que podem;

trevos de quatro folhas a ser falsos amigos,

cedo ou tarde vendo tapado seu farol,

enquanto os braços ainda agitam e sacodem...

COPISTA I (2004)

direitos autorais paguem ao Vento!

para mim não: ao vento e à Alvorada,

à musa peregrina e Consagrada,

senhora apenas do total Portento!

que tudo quanto escrevo é Benefício

da indiferente e clara Inspiração,

que usa cada gesto de Emoção

para criar magia... e Malefício!

sem se importar se os versos me Agoniam!

se desfibram minhalma ou se Podiam

dessangrar-me total o Coração;

pois essa musa de aroma e Nostalgia,

usa-me apenas... em véu de Melodia,

para expressar-me na carne uma Ilusão...

COPISTA II – 7 Set 14

muitos reclamam de que haja Plagiadores

a copiarem suas ideias, os Indecentes!

não as ideias, é claro, mas tais Gentes

que de outrem roubem as frases e Pendores!

não é assim comigo, pois Louvores

são indiferentes para mim, pelos Frequentes

poemas transmitidos para as Mentes

de quaisquer sejam meus gentis Leitores...

o que me importa é o verso Subreptício,

que se introduza em suas redes Neurais

com seus modelos, que ali encontrem Ninho...

e que outros peguem do soneto o Vício,

que sobrenadem os poemas no Ademais,

em corações nutridos com Carinho...

COPISTA III

por que, afinal, que representa um Nome?

já Shakespeare em seu Romeu e Julieta

fez a donzela emitir prece Secreta

contra essa rixa que cem vidas Consome...

de fama e glória nunca tive a Fome,

sigo de Kipling a orientação Dileta:

derrota e triunfo, em sua dupla Meta,

a nenhum permito que minhalma Dome!

o que importa é que esses versos Voem

e derramem por aí as suas Mensagens...

que diferença me faz a sua Autoria?

não são orgulho e vaidade que me Roem,

somente a ânsia de difundir essas Miragens

nos mil poleiros de cada alma Vazia...

COPISTA IV

porque, de fato, eu só escrevo Versos

e nem sei se realmente eu sou Poeta

ou só recebo a transfusão Secreta

do sangue lírico de ancestrais Diversos...

sou mais escriba dos florais Dispersos

pela floresta do ar que me Intersecta,

que o inconsciente mais ou menos Intercepta

ou que me assopram seres nela Submersos...

destarte, eu me percebo mais Copista

do que autor destas estranhas Maravilhas...

se me as copiarem, por que hei de Reclamar...?

que se difunda antes o sonho na Conquista

das mais diversas e inesperadas Trilhas,

mesmo que a mim ninguém venha a Recordar!

ASSASSINATO MUSICAL I (8 SET 14)

Este ano, os mosquitos não existem;

já o ano passado foram pouco numerosos,

em consequências de muitos dias chuvosos,

que os ovos lavam por mais que elas insistem

em pô-los nas bromélias que aqui assistem,

no chafariz ou em depósitos lodosos;

até o prefiro, mas temo os perigosos

Aedes aegyptii, que ao contrário me visitem,

os Culex comuns abrindo o nicho;

segundo consta, larvas já encontraram

nos arredores da cidade e as controlaram.

Ninguém tem pena desse pobre bicho

que é, afinal, tão só transportador

dessa doença que nos causa tanto horror...

ASSASSINATO MUSICAL II

Dois de meus filhos e também dois netos

por tal moléstia já foram afetados;

no Mato Grosso e em Maranhão, coitados,

viviam então, longe assim de meus afetos...

Aqui em Bagé, a não ser sejam secretos,

só houve casos entre desafortunados

que pegaram lá no norte e aqui chegados

já com filhotes no sangue, em indiretos

partos causados por alheios geradores,

menos maldosos que os aliens do cinema,

pois raramente devoram o hospedeiro,

mas sem que isso elimine meus temores

de qualquer dia participar da pena,

nesses verões de dezembro ou de janeiro...

ASSASSINATO MUSICAL III

Pois anos houve em que sempre eles resistem,

por mais que esfriasse, surgiam sempre mais,

nascendo os Culex nas poças dos quintais;

ovos eclodem e às moradias ir insistem...

O que acho estranho é que aqui tantos se avistem

pelos banheiros e pias, sem jamais

descobrir de onde vêm esses fatais

mensageiros que tanto me contristem...

Com mata-moscas os assassinava todo o dia,

para evitar a grande orquestra do fium;

deito-me tarde, mas quando apago a luz

vindos só Deus sabe de onde, em zombaria,

chegam alegres a morder-me, um a um,

todos os membros que ainda encontrem nus!

ASSASSINATO MUSICAL IV

Sempre prefiro escutar as sinfonias

em meus diversos aparelhos de som

ou no meu velho rádio de bom-tom,

sintonizado no SODRE, em melodias... (*)

O problema com as mosquitas é que as gurias,

quando procuram chupar meu sangue bom,

tocam somente de uma escala o tom,

sem variar nunca as suas harmonias...

E realmente, nunca entendi direito

porque avisam de sua presença, claramente,

em algum tipo de mosquitocídio...

Mas os Aedes, em sorrateiro jeito,

segundo dizem, chegam silenciosamente

e já é tarde quando sofrem o tapacídio!...

(Servicio Oficial de Difusión, Radio-Televisión y Espetáculos,

rádio oficial da República Oriental do Uruguai)

CAMBIANTE I (1974)

Retraído o farol, o mistério se apaga,

Na escuridão total de atroz revelação,

Onde não mais reluzem ardor e exaltação

Da delícia/incerteza que nalma a carne alaga.

Quando a noite se esvai, as cores se retiram

(E surge a escuridão servil da luz do dia,

Desfaz-se na ilusão o sabor de nostalgia)

Que nalba tremeluzem e ao dealbar rutilam.

Que as cores da alvorada são cores de incerteza,

De rosicler fingido, que esbate nessa usança

E apaga o verdigris do sonho e da esperança.

E ideal se afirma o calor da mór beleza:

Só vive na poesia, só tem do amor o açoite

Quem cores pode ver na mais escura noite.

CAMBIANTE II (9 SET 14)

Muitas estrelas no céu são azuladas,

Outras são brancas ou trazem tons de rosa;

Há verde-amarelada mais formosa

Outra em topázio lança raios iridiados;

Em Marte veem assombros encarnados,

Água-marinha na imagem ponderosa

De Júpiter. E de Vênus é famosa

Cada centelha de brilhos delicados;

Porém é o próprio céu acinzentado,

Onde se encontram galáxias ocultas,

Sob a forma de distantes nebulosas;

Caso o contemples com o olhar fechado,

Pelas tuas pálpebras o negror indultas

Com o purpurino das artérias prodigiosas...

CAMBIANTE III

De olhos fechados, surgem novas cores,

Nas imagens percebidas de fantasmas;

Em escotomas cintilantes pasmas,

Quando a enxaqueca impõe os seus ardores;

De olhos abertos, em aquarelas dores,

Mil tons de preto cambiantes em miasmas,

Mil faíscas e centelhas quando orgasmas,

Mil tons de leite após, consoladores...

Nesse antiarco-íris os negros esplendores,

Em catavento que jamais termina,

Nas coortes de nuances, turbilhão;

Pintor algum gravou quanto o fascina

Na escala cinza de seus mil temores,

No daltonismo de seu próprio coração!

CAMBIANTE IV

Na escura noite a sombra é uma quimera

Que somente quando há luz se manifesta;

Pelos caminhos do luar surgem em festa

Essas pequenas sugestões de fera;

E a cada passo tua ilusão se altera:

À luz da Lua, uma canção de gesta,

Os mil espectros dos caules de uma giesta,

Nessa acendalha que nunca reverbera.

Vem a alvorada a espantar a nostalgia,

Em cada instante a sacudir caleidoscópio,

Os revenantes se escondem em segredo, (*)

Salvo em momentos da mais branda harmonia,

Em serpentina fumaça, luz de ópio,

Como da Terra a projeção do albedo... (**)

(*) Almas penadas.

(**) Luz projetada da Terra sobre a Lua ou satélites artificiais.

MAÇÃS NOS OLHOS I – 10 SET 2014

Tomo a cabeça nas mãos e nas narinas

enfio a pena, em busca de sonetos;

saem os retalhos da mente prediletos,

a resolver-se em cem palavras finas...

Enfio os dedos nas grisalhas crinas

sobre a coroa que ostentam esqueletos;

por sob o escalpo, os ossos vêm, secretos,

a proteger as meninges de assassinas

pancadas que se sofre em cada queda.

Mas das narinas, ao invés de sangue brota

nova metáfora que sequer eu conhecia,

massa encefálica exposta nessa leda

sequência de ilusões e de derrota,

nas miríades de poemas que te envio.

MAÇÃS NOS OLHOS II

Os pômulos do rosto o olhar protegem,

igual que os supercílios e as pestanas;

as sobrancelhas contra a luz ufanas,

enquanto as pálpebras para a luz se atrevem.

Mas há maçãs nos olhos que te seguem,

por onde quer que tua visão inflamas;

têm mesmo talos, quais pequenas chamas

que dos quiasmas até ao córtex prosseguem, (*)

quando as pupilas devoram cada imagem

e o mundo vão inteiro assimilando,

num colorido e mutável paladar;

e assim roubo de mim mesmo, com coragem

o universo que me vão processando,

para um universo renovado te enviar...

(*) Núcleos nervosos que processam a visão.

MAÇÃS NOS OLHOS III

São os olhos de maçãs devoradores,

roubando os olhos daqueles a quem fitam,

furtando os sentimentos que os incitam,

saqueando a própria vida e seus amores...

Por isso alguns, tomados de temores,

quando encarados, teu olhar evitam,

temendo o furto dos mundos em que habitam,

seus olhos escorreitos de terrores...

Que uma maçã a outra maçã devora

e ao mesmo tempo se deixa devorar

quando aspira à verdadeira intimidade,

em que a cor não se descora ao retirar,

mas uma cor a outra cor namora

e então se deixa namorar sem falsidade.

ESPECULANDO I – 11 SET 14

De tanto se olhar no espelho,

A donzela fez-se vidro,

Imersa em álcool anidro,

Volátil como um conselho,

Estreita como um reflexo,

Uma lâmina de prata...

Porém que jamais lhe bata

A ansiedade pelo sexo!...

Nem sequer tem coração,

É uma lâmina incendiada,

Despida de pensamentos.

Tocada pela emoção

A donzela envidraçada

Se faz em mil fragmentos!

ESPECULANDO II

De tanto me olhar, o espelho

Meus cabelos vai chupando,

Os meus dentes arrancando

Para o fantasma parelho,

Que oculta no seu conselho,

Mil reflexos pisando,

Mil tretas acumulando,

Como feiticeiro velho.

E quanto mais eu contemplo,

Mais de mim eu perderei,

Aos poucos envelhecendo.

Remoçado no seu templo,

Meu inverso é Dorian Gray,

Toda a minha vida comendo!...

ESPECULANDO III

Dançam no fundo do poço

Cem reflexos roubados,

Em prata e vidro encarnados,

Conservando o rosto moço;

Da face resta o caroço,

Sobram ossos esticados,

A pele e o vigor tomados,

Reforçando aquele esboço...

Mas a donzela fugiu,

Deixando atrás a matrona,

Puro fantasma, afinal;

Mas no vidro ainda luziu,

Da velha beleza a dona,

Como um sonho de cristal!...

CANTO VAZIO I – 12 SET 14

A nossa própria honra é só o que existe

no privilégio de sermos quem pensamos,

no som intrínseco em que perduramos,

no rebrotar em que a humanidade insiste,

no refletir do olhar que olhar aviste,

no retribuir do amor em que confiamos,

na remissão da dor de quem curamos,

no grupo familiar em que a alma se enquiste.

Ninguém nos honra quando nos escolhe,

mas é a si mesmo que escolhe na atração:

todos vivemos nos abismos de um espelho,

que outros reflete e a nossa luz recolhe,

fantasmas de nós mesmos, na dupla dimensão

que se repete em cada sonho velho...

CANTO VAZIO II

Quando se ama outrem, a nós vemos,

refletidos no olhar que contemplamos;

é o amor de outrem por nós que nós amamos

e outrem nos ama por que lhe recordamos

a própria imagem pelo ato que vivemos;

o seu espelho nos olhos é que olhamos,

é o eco de sua voz quando falamos;

de seu odor a sombra trescalamos.

E mais ainda nos filhos que geramos;

ama-se a sombra de nossa geração,

esse deeneá que adiante transportamos,

por isso os pais amamos e os odiamos,

em nossa luta por total individuação,

mas nos espelhos mais e mais os contemplamos.

CANTO VAZIO III

Não é favor algum amar-se alguém,

nem alguém, por nos amar, nos favorece;

no amar existe a mais estranha prece:

em outrem se ama o que de nós provém.

E quanto mais se reparte o que se tem,

mais essa retribuição se nos aquece:

a vida alheia sobre a nossa desce,

somos nós mesmos e somos mais alguém.

A honra existe na maior fidelidade

com que somos nós mesmos refletidos

nesses olhares algures compilados;

e a honra esvai-se nessa fatalidade

da morte ou ausência dos entes queridos,

quando alma e corpo nos deixam desolados.

PERISSOLOGIA I [Repetição] (2006)

Me arrojo para ti, no teu abraço,

por mais raro que seja; e infrequente

seja a ocasião na qual eu te retraço

a reviver, de forma permanente...

E me recordo assim do amado instante:

dos toques e carícias de ouropéis,

do gozo que esvaiu-se, delirante

prazer sonoro de tantos decibéis...

Porque, afinal, é apenas pleonasmo

afirmar que essa busca de um orgasmo

é o que me leva a ti, constantemente...

E dizer que me trazes alegria

não passa enfim de uma tautologia

que me perpassa o coração e a mente.

PERISSOLOGIA II – 13 set 14

Eu me recordo do momento peregrino

em que amor se consumou da vez primeira

e igual recordo a noite derradeira

em que amor demonstrou-se pequenino.

O Enfado, irmão do Amor, feio assassino,

a introduzir-se de forma sorrateira,

por palavras, trejeitos, bandalheira

mais ou menos inocente, em asinino

troçar solerte de erros, sem sentido,

na zombaria de uma ofensa intencional,

nesse descaso de indiferença feito,

na ruptura do orgasmo indeferido,

no desgosto pelo odor tão habitual,

na casual frase de puro desrespeito...

PERISSOLOGIA III

Eu me recordo das vezes repetidas,

no reatar hesitante do ir e vir,

às más lembranças tentando retorquir

das pequenas traições desenvolvidas,

sem verdadeiras culpas concebidas,

somente deslealdades a nutrir

cumplicidades com terceiros, a insistir

nessas peçonhas diariamente produzidas,

nessas frases de orgulho, sem razão,

como se a entrega fosse honra concedida,

qual regalia de aristocrático favor

e não a troca mútua de emoção,

pelo ardor reforçada, em tal medida

em que o hormonal se toma por amor.

PERISSOLOGIA IV

Mas nem sempre se encontra a saciedade,

quando os laços têm mais plena solidez

e não se rompem por tão só desfaçatez,

por mais que predomine essa saudade

dos momentos de paixão que, na verdade,

só eram prelúdio à espera de outra vez,

nessa confiança mútua na mudez,

de novas juras sem ter necessidade.

Assim recordo dos momentos repetidos,

de mil orgasmos vivendo na lembrança,

nessa glória comum que a mente alcança,

mesmo na ausência dos beijos desvairados,

quando os sonhos retornam dos olvidos

e tornam viva a soma dos passados.

ESTRELA DA MANHÃ I – 14 SET 14

Eu não procuro o pote de ouro do arco-íris,

só a esperança de encontrar seu fim;

é em Bifrost que penso, no outrossim

das sagas nórdicas, em seu arcanos giros.

Mas se eu pudesse cremar-me nessas piras

Que do Valhalla conduzem ao alfenim!...

Viriam valquírias a me buscar assim

para os banquetes, canecões e pires

que ali se quebram em batalhas, diariamente,

saudando a morte nova dos heróis,

ressuscitados após cada combate!...

A morte e a guerra o hino mais frequente

nesses poemas dos mais velhos arrebóis,

enquanto amor só enfraquece e nos abate!...

ESTRELA DA MANHÃ II

De nada serve, afinal, o pote de ouro

que guardam leprechauns, ciosamente; (*)

o ouro busca dos anões cada indolente

que em trabalhar não vê qualquer tesouro!

(*) Duendes da mitologia irlandesa. Pronuncia-se “lepercóns”.

Esse pote só o entregam por desdouro,

por mais que o neguem destemidamente

ou finjam cair em armadilha ingente:

do caldeirão então furtas o brilho louro...

Porém, passado um dia ou uma semana,

quando pensares que o podes usufruir,

tens folhas secas, palha, ou então argila,

ou mesmo insetos ou víbora magana...

Foste iludido pensando em iludir;

foste esquilar e tua lã outrem esquila!...

ESTRELA DA MANHÃ III

Tampouco espero setenta virgens possuir,

após a morte, numa luta pela fé:

teria uma virgem a fazer-me cafuné,

outra meus pés numa bacia a ungir...

Ao tomar banho, ficaria no sopé

de quatro delas, sua água a compartir;

as refeições vão decerto me servir,

talvez alguma a meu lado durma até!

Mas para me aquecer, igual ao Rei Davi,

que eternamente virgens permanecem

e decerto não atendem a outros fins...

Mas sua conversa escutarei ali,

pois de mudez as setenta não padecem:

querendo paz, irei buscar outros confins!...

ESTRELA DA MANHÃ IV

Posso ingressar nos corais angelicais:

talvez conserve após a morte a voz...

De ser solista não andarei empós,

por tocar harpa não me interesso mais...

As camisolas de tais páramos celestiais

não me chamam a atenção. Rasga-se o cós

para prender as asas com dois nós

ou elas já nascem de maneiras naturais?

No inferno eu nunca cri, pura ilusão

por conservar o povo controlado...

Muito melhor essa confraternidade,

meio selvagem dos combates sem razão,

enquanto o exército vai sendo bem treinado

para o Ragnarok final da eternidade... (*)

(*) O final combate entre os deuses e seus adversários.

ESTRELA DA MANHÃ V

“Na casa de meu Pai, muitas moradas há:

vou preparar-vos lugar,” se prometera;

talvez ocorra justamente o que se espera

e cada qual lá o que deseja encontrará...

Também uma outra profecia se achará:

que mil anos Cristo reina nesta esfera

e então se liberta o demônio, besta-fera,

que contra as forças divinais combaterá!

Não é esta outra versão do Ragnarok?

Nesta os santos do céu combaterão

com espadas, alabardas e armaduras?

Ou só trombetas de clangoroso toque

e igual que em Jericó, se abaterão

do mal muralhas, ante harmonias puras?

ESTRELA DA MANHÃ VI

O que eu queria mesmo, quando a morte

enfim chegar e os filhos me cremarem

e em qualquer parte minhas cinzas espalharem,

é que cometas se aproximem, de tal sorte

que o espírito me aspire um deles e me porte,

em suas órbitas excêntricas a marcharem,

em direção ao Ápex, a acompanharem (*)

todo o sistema solar para o seu norte...

(*) Ponto presumível, na constelação da Lira, para o qual avança o Sol.

Ou então que Vênus, a Estrela da Manhã,

chame primeiro e nas suas nuvens eu me afunde,

participando de sua mágica estelar...

E como Vésper retorne, em igual afã (*)

e de todo esse luzeiro então me inunde,

qual simples gota, mas de fulgor sem par!...

(*) Vésper, a Estrela da Tarde, é o mesmo planeta Vênus.

OTIMISMO I – 15 SET 14

(Em Óptimo, P não soa, mas em Epitácio P soa – Aparício Torelli.)

Tudo depende do teu ponto de vista:

se olhas para o chão, é uma perspectiva,

se encaras a parede, mais perto o olhar se criva,

se te voltas para um lado, diverso é o que se avista.

Nessas mudanças, é preciso que se insista,

pois sua razão pode ser bem mais esquiva,

equilíbrio do hormonal na carne viva,

que nos inclina para esta ou aquela pista...

Destarte alguém se torna um pessimista,

porque o “conjunto dos humores é bilioso”,

qual costumava-se afirmar antigamente,

enquanto outro tenha índole otimista

porque seu próprio equilíbrio é harmonioso

e com a mínima alegria se contente...

OTIMISMO II

Os meus hormônios são, por sorte, favoráveis,

por isso a vida encaro com constância,

meus dissabores de somenos importância,

as alegrias, como a brisa, imponderáveis...

Mesmo os caprichos da mente memoráveis

só me incomodam em primeira instância;

logo recorro e os contemplo com distância

e encaro os fatos de formas mais saudáveis...

Mas tenho eu qualquer mérito nisso?

Mesmo sofrendo os mil achaques naturais

que são o preço da longevidade,

eu os enfrento, sem ser em nada omisso

no transformar desses males em fanais,

quais mil poemas de prodigalidade

OTIMISMO III

Ou então, tudo isso é um escapismo,

que me preserva a esperança no futuro,

no esquecimento de um passado um tanto duro

e de um presente que ainda encaro com sofismo.

Mas nada importa, a ironia é meu modismo

e é pelo riso que meus males esconjuro;

mesmo sabendo que as dores eu não curo,

sempre endorfino em meu vago solipsismo...

Pois cada um de nós cria seu mundo

e é responsável por sua manutenção,

essa tarefa a aceitar com pessimismo

ou os problemas a enfrentar com ar jocundo,

tudo encarando na mais plena aceitação,

sabendo a si perdoar com otimismo.

OTIMISMO IV

Pois os percalços, nós mesmos os criamos;

a nossa mente o Nous abrange de Plotino (*)

e o Demiurgo de Platão, semidivino,

mantendo acesa a chama em que pisamos.

(*) O Nous é a Segunda Emanação, segundo o Neoplatonismo, correspondendo à

Alma, enquanto o Espírito é a primeira; o Demiurgo é um Ser encarregado pelos

deuses de conservar e controlar o mundo material, segundo Platão.

Vida saudável é essa que levamos

no aceitar de cada dardo pequenino

a que erro nosso deu margem no destino

ou o fado bom que nós mesmos provocamos.

Há livre arbítrio em cada pensamento,

mas necessárias lhe são as consequências,

toda a virtude no igualitarismo,

sem o mundo condenar por julgamento,

nem com excesso de benevolências,

erros e acertos a enfrentar com exorcismo...