O AMOR SECRETO DE JANE POWELL
José António Gonçalves
o cinema está cheio com apenas um espectador
de olhos fixos na tela onde a história se passa
e Jane Powell canta e dança com o corpo fremente
e sim havia apenas um espectador
mas de tanto silêncio pensar-se-ia
que por ali não havia mesmo gente
a trama não vale nada a música é má a luz pior
e todavia há um movimento brilhante de cor
quando a actriz ri e grita em altos sustenidos
que só a paixão de um espectador
por certo que tudo aguentaria
sem perder de vez os sentidos
tem os olhos marejados de lágrimas os lábios
magoados de tanto serem na ânsia mordidos
as costas vergadas e doloridas sobre a cadeira
e nem dá pela falta de pipocas
nem pelo corte da electricidade
tão profunda lhe é a cegueira
nos dedos comprime uma caneta velha Parker
e no bolso cigarros brasileiros e isqueiro Dupond
coisas que não dispensa no dia-a-dia urbano
mas ali dava-os mais a alma
o carro e até toda a biblioteca
em troca de mais luz sobre o pano
aquela mancha negra abafa os louros do cabelo
cala o som dos passos nas marcas do cenário
e fá-lo sentir-se mal na sua paixão desmedida
é aí que Vinícius decide deixar
de ir ao cinema matar Jane Powell
tornar-se poeta e mudar de vida
JOSÉ ANTÓNIO GONÇALVES
(inédito.22.08.04)
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