O AMOR
O amor foi mastigado pelas traças que dormem na costura de minhas roupas, pelos cupins dos meus livros que sofrem de solidão pela ausência da minha leitura, pelo pó da minha estante no canto direito da sala, pela nota Ré do meu violino desafinado. O amor foi arranhado pelas patas das minhas gatas, foi resfriado pelo vento do meu ventilador, cozido pela minha panela de pressão. O amor foi calçado pelas minha sapatilhas de ponta, foi guardado dentro da mala de viagem. O amor pegou insolação, tomou chuva, brincou entre raios e trovões, subiu e desceu, atravessou e parou na contramão. O amor foi arauto e se perdeu no meio do caminho sem bússola, riu e chorou, abraçou e foi esquecido, encantou-se no desencantamento, cantou e descontou o contracheque no banco fraudulento da dor. O amor foi carta fora do baralho, tornou-se oferenda na encruzilhada da madrugada, perdeu-se dos pais no parque de diversão. O amor foi frase ontem, hoje trocadilhos e amanhã quiça. O amor foi motorista do passageiro, bandeira derrotada da guerra, ouvidos dos gritos, febre do convalescente. O amor foi tesão do sexo, paixão da malícia, controvérsia dos sonhos. O amor foi locutor e ouvinte da aurora, andarilho dos sorrisos, puta das lágrimas, político das promessas, anjo das feridas expostas. O amor foi medido pela fita métrica da costureira desempregada, vestindo o corpo de uma mulher desavisada. Ah! O amor...