Carta a Realidade
Eu sou a tua mulher; e eu sou porque eu quero ser; mais do que porque eu preciso ser; eu sou tua mulher porque é assim que eu sou um pouco mais feliz; ou um pouco menos triste; e eu sei disso porque eu já vivi muito tempo sem ti; antes; e eu sei como eu era; e agora eu sei como eu sou; é matemática, meu bem, é lógica, equação; é por isso que eu sou tua; de coração; minha cama é muito grande pra ser só minha; e eu tenho amor demais pra ser sozinha; não dá; e é aí que tu entra; tu é pra onde eu consigo mandar minhas coisas todas; pra me aliviar um pouco; tu chega tarde, cansado, bagunçado; e eu já tô em casa, cansada, bagunçada; e a gente não fala nada muito bonito um pro outro; nenhuma declaração de amor; não precisa; pra quê revisitar as coisas óbvias; pra quê palavras bonitas depois de um dia inteiro de trabalho; não precisa, meu amor; amanhã de manhã eu digo que te amo; amanhã de manhã tu diz que tu também; aí depois a gente toma um café horrível, aguado; e a gente discute, tem uma briguinha, quem sabe; a gente pode passar o dia decidindo o que fazer, sem fazer nada; e de tardezinha a gente começa a ver um filme; que vai ficar num segundo plano assim que o nosso sexo começar; e a gente vai transar enquanto algum ator americano protagoniza uma cena clássica dessas; tu vai acender um cigarro; eu vou acender um também; e aí a gente que vai ser uma cena clássica dessas; ofegantes, fumando, na cama, com o cinzeiro entre as cobertas; e vai ser só o início da noite; eu sou a tua mulher, porque eu te amo; e porque eu quero ser; porque eu me sinto muito bem contigo; tu vai levantar, e ir até a cozinha, e jogar no microondas uma comida congelada horrível; e a gente vai começar a beber; tu vai trazer pro quarto uma cerveja; e acender outro cigarro; geração saúde; tu vai voltar pra cozinha, tirar a comida do microondas, jogar uma batata-palha em cima; romântico; e trazer pro quarto; umas três horas depois disso, a gente vai tá na casa desse casal, amigo; falando sobre o mundo, a vida, a arte, o brasil, não sei; tu vai tá bêbado; e eu, bêbada; e vai ter um momento em que tu vai tá falando todo perdido, fora do ar; e eu vou ficar te olhando; e pensando que, porra, eu sou a tua mulher, porque eu quero ser; mais do que porque eu preciso ser; porque eu te amo; sendo tu o idiota que tu é; e eu a idiota que eu sou; a gente sendo os idiotas, imbecis, que nós somos; com trinta e poucos anos, meu amor, sendo como nós somos, eu não sei quanto tempo a gente vai durar; talvez daqui a uns dez anos tu vire um maratonista vegetariano, que não bebe, não fuma, não pensa; e eu, uma perua qualquer, dondoca, acomodada na vida; não sei; mas agora, isso que a gente vive hoje, meu bem, me parece a coisa mais verdadeira do mundo; por isso eu te escrevo; porque eu sou a tua mulher; e sou porque eu quero ser; enquanto tu dorme um sono bêbado, eu te digo essas palavras, que vêm do fundo de mim; da parte mais natural; amanhã é dia cinco; é o último dia pra pagar o aluguel; tem que ver isso; meu amor, acorda, olha só.