CARTA QUE ME FIZ

Eu hoje me fiz meu destinatário. Quero escrever a mim mesmo para ler as linhas da verdade que minha alma não tem coragem de dizer a si mesma.

Não me importa o que pensarei de mim, nem tão pouco argumentarei se alguma acusação me fizer ou se algum equívoco derivar da errônea concepção que tiver do que me digo. Certo estou que meu pessimismo me beneficia bem mais que o amor odioso que o mundo hipócrita me julgou digno como herança.

O que vim aqui fazer? Porque permeio em passos tortos as retas veredas de um mundo que me vomita? Sou a contradição; personifico o erro que a moral leviana não tolera.

Quero me dizer que um abismo me separa da inocência. Eu erro sem agir, porque meu erro não é filho dos procederes, mas pai e mãe dos rótulos que me perseguem. Meu bem é mal, meu bom é ruim, meu acerto é desprezível, minha transgressão é superlativa. Grãos de areia que produzo são rochas imensuráveis de assolação, meu dedo em riste é tortuoso e se volta contra mim, porque quando acuso saio réu dos autos que denunciei e meu castigo é o deleite confortável da eterna maioria que se me opõe.

Que me faço então? Nada aqui me basta! Nada que faço basta a nada!

Sou a sombra suspeita das ações improváveis, sou a prova viva dos passos que nunca dei – porque não importa se fiz ou não fiz, porque fiz o feito não feito, porque meu conteúdo é vão, e porque meu rótulo é meu dna descoberto pelos senhores do meu ser.

Pago caro por ser alienígena. Minha feiura é bem maior que as demais. Sou a síntese da antítese, porque minhas flores furam como espinhos e porque meus medos são a ferocidade a mim atribuída pelos que me têm por fera.

Não há ação louvável em meus punhos, nem há ventura virtuosa em meu caminhar, posto que na grosseira ação do meu infortúnio sou lançado sem dó no poço infindo dos açoites; na leveza do agir indecifrável me decidem pelo mal, já que da luz não sou digno. E se mereço o forte golpe, não alcanço fuga também ao gosto amargo da fruta pecaminosa que sequer mordi.

E quem disse que não lutei? Por que me atribuiram uma iniquidade a mais, a saber, a alcunha pessimista? Não sofro da estima subterrânea; padeço do imerecimento esvoaçante! Quis vencer a crueldade pestilenta, injetando amor nas artérias do meu ser.

Fui eu quem fez o sol, reunindo a luz de cada olhar fugitivo em ti. Fui em quem fez o mar, aglomerando as gotas salgadas desse meu sofrer por ti. Fui eu quem fez as flores, ao arregimentar cada célula de teu aroma; fui eu quem fez o céu, ao criar as cortinas nascidas no azul de teu sorrir; fui eu quem fez as estrelas, quando temeroso da escuridão tomei por empréstimo a áurea de tu’alma. Fui eu quem me fiz, quando aproveitei as sobras de tua construção!

Arquiteto, pois, da luta contra mim, por um segundo, abandonou-me a solidão e o sorriso me assaltou. Não porque de ínfimo me fiz máximo, mas porque te vi!

Te vi e vi o meu melhor. Te vi e obtive forças para ser gladiador triunfante nas arenas onde me espreitam minhas feras interiores. Te vi e não me importei pelo sangue vertido nas flores que colhi pra te dar. Te vi e não dei conta de que morri feliz a cada dia em que te fiz nascer. Te vi sem te ver, pra constatar que vives na pureza do meu olhar visitado pelos passos que hoje me esmigalham.

Agora me escrevo: tenho saudades desse segundo de alento que se foi!

O sol agora me queima impiedoso. Me negou a sombra de seu beijo, me exigiu o ódio e condenou-me ao fogo, porque lhe amei!

O mar agora me lança furioso contra as rochas. Quer despedaçar a todo custo a paixão que em mim rejeitou!

As flores agora me negam suas pétalas. Só o orvalho que lhe molha vez por outra me visita o rosto.

O céu agora está sem cor. Posso ver o azul à distância a cobrir o véu dourado dos cabelos que jamais toquei.

As estrelas já não posso ver. O eclipse da solidão já não me permite contemplar a luz que dá sentido ao meu caminho.

Quanto a mim....o que posso dizer? Meu espelho nada mostrou. Tive que escrever a mim mesmo pra saber de meu paradeiro; mas bem sei que se esconde em ti, sendo a exata forma do meu ser, esculpida pelo teu injusto adeus!

Reinaldo Ribeiro
Enviado por Reinaldo Ribeiro em 11/05/2007
Reeditado em 16/05/2007
Código do texto: T483287
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