SUSSURRA-ME AS PALAVRAS QUE O VENTO LEVA
José António Gonçalves
sussurra-me as palavras que o vento leva
murmura-as devagarinho bem junto aos meus ouvidos
preciso de recolher todas as suas letras cantar a pontuação
e deixá-las vibrar como cordas afinadas de harpa
nessa caixa antiga de ressonância que trago no peito
respondendo solícita ao nome que lhe deram de coração
vai por aí repetindo-as compondo-as na lira do tempo que passa
e para vê-las pendura-as nos ramos mais altos das árvores frondosas
anicha-as no recôndito lugar onde se aquietam os segredos
e repete-as com o fulgor solene das auroras preguiçosas
sempre muito lentamente como se fossem delicados brocados
misturados na água para despistar o rasto vago dos nossos medos
não hesites em projectá-las contra uma parede em ruínas
com a forma absoluta da sua majestática completude
e se elas desejam significar algo pois que assim seja
logo não vaciles por causa de uma errática nuvem retardatária
perseguindo uma lufada de pássaros em disciplinada viagem
e soletra-mas sopradamente apenas ao de leve como quem beija
e se o vento um dia acabar por tentação de pecado por te enganar
devolvendo-te o amor sofrido que lhe deste tantas noites em troca
nesse brilho cúmplice com que me imaginas e com ele me olhas
põe à luz das estrelas tudo no papel com a cor da loucura total
e converte-o num verso à solta gritando livre do aço das suas algemas
para ocupar todos os livros de poemas em cada uma das suas folhas
JOSÉ ANTÓNIO GONÇALVES
(inédito.11.08.04)
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