Não me escrevas palavras indeléveis

Não me escrevas palavras indeléveis

fundidas a frio no fundo rolado de um rio

sem água para navegar.

Usa-as com exiguidade, com parcimónia total.

Escolhe uma a uma de uma abissal floresta.

Apenas aquelas que acredites seres capaz

de, tal ousado gabiru, em mim fazer voar.

Depois, meu amado, rola o teu corpo nu

no lençol bordado, aqui ao lado.

Envolve-me no varal da loucura mais arrebatada.

Trinca a pele rosada a minha boca aberta

com a furia intempestiva

com que molhas a palavra nos dedos da saliva.

Desliza de novo, envolve-te no verso do verso

e de novo no seu reverso.

E de novo no seu começo…

Denta por entre meio,

a ponta oferta dos meus seios, com a força

com que mordes num assobio, uma a uma,

bravas ventanias, as que galgam na ousadia

as serras que te viram nascer.

Não, não escrevas mais silabas indeléveis

nos vales granizados dos teus e meus pecados.

Abre de vez os braços, abre-os de par em par,

deixa-os apenas suspensos nas costumeiras aduelas,

que não os quero frinchas estreitadas de janelas.

Quero-os vastos de largos, quero-os imensos de longos.

Dá voz aos pássaros dentro de ti povoados,

esses, do bico cortado. Dá voz aos seus chilreios…

Aos pássaros que te sobem do peito aos ombros,

e que se revelam carentes em alvoroçados enleios.

Mel de Carvalho
Enviado por Mel de Carvalho em 02/05/2007
Código do texto: T471721
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