Esperança de Avestruz

Você calou a solidão no fundo escondido da arca mais velha dos sótãos da alma?

Então ligue a televisão para encontrar a salvação, remédio para todos os males. E espelho de Portugal!

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Dê atenção ao locutor, há uma nova esperança no ar! Olhe bem, abra os ouvidos! Que ele malabarisma com a imaginação, com os truques da entoação...

Veja bem como ele se serve dos estereótipos linguísticos de criatividade aplicada.

Veja bem porque ele merece! Lança ao ar, num grande espectáculo sonoro, palavras funcionais como bolas mágicas de várias cores, palavras que se cravam como agulhas capilares, nas diferentes sensações latentes dos expectadores e ouvintes radiofónicos.

Porque hoje é dia de festa!

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A gente sabe que o mundo está a acabar.

A calote gelada da Antártida está a derreter, os oceanos vão galgar praias, promontórios. Vão engolir cidades e campos e florestas como nas calamidades pré-históricas.

E você, e eu, e ele, e toda a gente cala o medo! A gente nega-o!

E o medo, cinicamente, toma formas redondas, e sai-lhe, a ele, sob a forma de bolas, bolas sem peso específico, bolas colectivas, reluzentes bolas de ouro, reconfortantes e aconchegantes como os comprimidos tranquilizantes e a gente diz que não vai ver nada disto em nossos dias.

Deixe lá, que interessa, hoje é dia de festa!

E o Benfica é a esperança de todos nós!

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Você sabe que em cada três (3) australianos, dois (2) sofrem de cancro da pele. Você, e eu, e o locutor, e toda a gente! A gente sabe que a Vida está em risco-de-vida, . que o aquecimento dos mares, tal como as marés negras, provocam a morte das espécies marinhas, que estamos a ficar desprotegidos das radiações solares, que a redução (o abate) das florestas nos dizima do nosso quinhão de oxigénio, de água, e de beleza.

Mas a gente cala a função-do-real no poço sem fundo da urna de voto com uma simples cruzinha inscrita sobre o quadradinho do candidato mais palavroso a prometer desenvolvimento, mais despudorado a anunciar facilidades e abundância! E você, eu, a gente pensa secretamente, mais voto, menos voto, que é que tem? Os cordelinhos estão todos nas mãos deles...

Viva, sim, Amigo! Coma e beba! Ame. E durma. Subsista!

Que hoje é dia de festa!

E o Benfica é a esperança de todos nós!

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Você, e eu, e toda a gente, a gente sabe que há crianças escravizadas. Desde o berço. Que em vez de carinho, recebem avantajados quinhões de fome, e de trabalhos forçados. Crianças prostituídas. Desde o berço. Que em vez de carinho, suportam os efeitos das taras dos turistas. Que há crianças que têm, por mamada, um golo de vinho. Você sabe que há pessoas, povos, abaixo do limiar da miséria? Será que a gente, nós, fazemos ideia do que isso seja, a total ausência de qualquer esperança?

Você, ou eu, ou toda a gente, a gente calou a desilusão das nossas vidas debaixo das pilhas burocráticas que nos inundam a secretária dos nossos empregos sem brilho e sem surpresa?

Mas que interessa!

A gente liga a TV, a gente liga a radiofonia, a gente escuta, emocionada, o papagaio amestrado que comunica, em euforia linguística de criatividade aplicada, aquilo que a gente já sabe. A única fé que nos guia.

O Benfica é a esperança de todos nós!

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É bom esquecer as nódoas da roupa. A panela ao lume. A limpeza semanal que engorgita os fins-de-semana e as horas que deviam ser de ócio.

É bom esquecer que os tostões não chegam ao fim do mês, que a quarta semana nunca devia existir, quem foi o cretino que a inventou?

E os preços a subir!

É bom esquecer que a roupa do ano passado já não serve, que os putos cresceram. A gente até se esquece de agradecer aos deuses que os filhos crescem porque têm saúde!

É bom esquecer que os livros escolares custam os olhos da cara, que isto é tudo um grande, um vergonhoso negócio.

E os preços a subir!

É bom esquecer que os putos possam ter problemas na escola, os professores estão lá para quê? Que os aturem. Quando as coisas correm mal, a culpa é deles!

E você, e eu, e toda a gente. A gente cala a angústia, a ansiedade.

Que se lixe!

Que interessa? Hoje é dia de festa!

E o Benfica é a esperança de todos nós!

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E você, e eu, e toda a minha gente! A gente volta a ser criança! E a gente vai soltar, lá do fundo mais escondido da arca mais velha dos sótãos da alma, um papagaio-de-papel. Verde, translúcido. Leve, leve, leve. E a gente corre, a gente voa sobre as dunas, a gente é toda ouvidos para as canções do vento que segreda –Dá-lhe fio, dá-lhe fio, deixa-o subir. Monta-te nele, e vai, vai, grátis, a Viena. Que hoje é dia de festa. É o Benfica!

É o Ben-fi-ca!

A (maldita) esperança de todos nós

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Maio, 1990, s/d

Mundial de Futebol

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Myriam Jubilot de Carvalho
Enviado por Myriam Jubilot de Carvalho em 10/02/2014
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