Ouso desafiar o propósito da viagem
Ouso desafiar o propósito da viagem
num voo audaz de pássaros afogueados
pintados a rubro no azul da pele do céu.
Ouso enfrentar o traçado pré-determinado
num compasso poético e apoteótico,
num aviamento triunfal,
no delírio epidémico e no proclamado êxtase
de um fogo lapidado nos recifes
gelados dos nossos comuns caminhos.
Nos baixios fortuitos e nos escolhos ocasionais
ouso enfrentar silhuetas dúbias reflectidas
nas sombras roucas de vozes projectadas
nos vitrais agora requebrados pela luz
de estrelas desmedidas,
na certeza, meu amor,
de que existem rotas abrigadas
em búzios e em ostras ainda não desvirginadas.
Rotas só nossas.
Para nós e por nós traçadas!
Então, desafio-me na ousadia quase morta
Enfrento-me destemida no palco escarpado da vida
Enfrento bestas fustigadas em esporas
numa maquiavélica máquina de passivas horas.
Enfrento metástases, fístulas espiraladas,
chagas ululadas em ruídos sustenidos,
de soluços e sacaroses, açucares lentos,
na faminta sofreguidão de ternuras emancipadas,
de línguas penetradas na alma das salivas.
Ternuras escondidas e ressumadas nas palavras
que ainda não dizemos.
Dos gestos que não esboçámos.
Registos de que o corpo em segredo nos fala,
agasalhados lá no fundo, no convés, ao abrigo
das fúrias das marés.
Então, meu amado,
olho de novo o sonho aqui ao meu lado,
neste teu quadro proclamado e
deixo que o amor renitente que nos percorre
e incendeia do corpo à alma, me conduza na vertigem,
no assombro e no delírio de um voo planado
sobre o teu voo de pássaro obstinado.
Porque num outro lado, em algum lado, te sinto
embalado na mesma toada adivinhada
de um mesmo sonho partilhado
em igual estado de desejo
de dar o corpo
de acasalar a alma!
Num selar o sonho com um infindo beijo.