CORAÇÕES REMENDADOS & MAIS
CORAÇÕES REMENDADOS I – 2o JAN 14
Ela encontrou, com o coração partido,
Quem outro coração partido tinha
E imaginou que tal coração vinha
A recompor esse seu que havia perdido,
Sem perceber que em suas brechas o incontido
Coração que percorreu a mesma linha,
Nem agulha, nem pincel de goma aninha,
Capaz de restaurar o golpe havido.
Seu coração se partira e alguns pedaços
Haviam ficado ao longo do caminho:
Era incompleto o órgão no seu peito,
Enquanto o outro coração estranhos traços
De clivagem sofrera no seu ninho,
Sem permitir-lhe uma colagem sem defeito.
CORAÇÕES REMENDADOS II
Pois eram outras as suas rachaduras,
Outros ângulos seguindo e diagonais;
Em cada um havia fendas naturais,
Ali causadas pelas próprias amarguras.
Não existiam as retrações mais puras
Nos côncavos dos cacos, nem parciais
Convexas conexões piramidais
Que se encaixassem nas próprias dobraduras.
Os corações partidos se achegaram,
Buscando um meio de se consolarem,
Mas com suas necessidades diferentes
E assim, apenas mais se desgastaram,
Caquinhos leves a mais esmerilaram,
Por mais buscassem serem complacentes...
CORAÇÕES REMENDADOS III
Mas era grande demais a sua tristeza
E buscaram um ao outro consolar,
Com argila ou com cimento a se encostar,
Para à serrilha mostrar delicadeza.
Não eram arestas de amor, nem de nobreza,
Apenas talhos de estranho cepilhar,
Para menor tensão e esfacelar
Aquela cola aplicando em gentileza.
Era preciso mais... Uma resina
Que esculpisse os pedaços que faltavam:
Não se costuram dois corações partidos,
Senão de forma imperfeita e nada fina;
E em cada discussão se balançavam,
Da total restauração desiludidos...
CORAÇÕES REMENDADOS IV
Mas foi assim que moldaram a resina,
Por entre os dedos, com grande gentileza;
Das farripas as medidas, com certeza,
Foram tomadas nessa forma pequenina;
E ela moldou, com seu jeito de menina.
Os cacos para ele e, com firmeza,
Os prendeu, com saliva e com lhaneza,
Até que o coração inteiro assina.
E ele aprendeu o tanger da mesma massa,
Completando-lhe, um a um, os fragmentos,
Que de sua amada faltavam ao coração,
Os dois completos, por amor e graça,
Batendo agora com os mesmos sentimentos
De amor gentil, mas sem rasgos de paixão...
SEIO DE RENDAS 1 – 21 JAN 14
A Antonio Castro Alves devo a imagem
da Lua como um seio de mulher,
que nem sempre entrever permitir quer
a neblina que reluz... cinza miragem.
Se a imaginar à luz de minha visagem,
até um mamilo em tal seio posso ver:
de uma cratera nos limites perceber...
Mas foi o outro engolido por voragem?
Se a Lua é seio, é peito de amazona,
que a seu próprio tronco mutilou,
para melhor poder lançar suas flechas...
Prefiro o rosto de que Selene é dona,
que qualquer grego poeta contemplou
nessas montanhas de circulares brechas...
SEIO DE RENDAS 2
Que ali perceba a plena imagem de Astarteia,
algumas vezes sedutora em sua neblina,
noutras desnuda, sem pudor, menina
que não se acanha perante a vil plateia,
lascívia uivando, igual que uma alcateia,
enquanto lá nos céus ela se inclina,
a cochilar em travesseiros de neblina
e a provocar opiáceos de epopeia...
Em vez de um seio só sob suas rendas,
como queria meu ancestral baiano,
eu quero ver ali a deusa inteira
que os beduínos contemplam de suas tendas,
o bálsamo noturno de um proclamo
em cada estrofe da viola seresteira.
SEIO DE RENDAS 3
Há muito tempo que imaginam São Dragão
lutando com São Jorge nas planuras...
João Vinte e Três, em suas palavras puras,
de há muito descartou tal ilusão!...
Outros falam em um saco de carvão
que um homem traz às costas – amarguras
de toda a humanidade, mil agruras
desse Judeu Errante em procissão!...
Existe lenda, no país do “Ludopédio”,
como quiseram chamar o futebol,
que a Lua seja apenas uma bola...
Sempre escutei, aparvalhado pelo tédio,
as narrações que vão de sol a sol,
desse jogo com que oprimem desde a escola...
SEIO DE RENDAS 4
Mil vezes eu prefiro a feiticeira,
mesmo que seja, talvez, deusa caolha,
no olhar de prata que em ironia molha
nossos caminhos com sua luz brejeira!
Mil vezes eu prefiro a alvissareira,
cujo reflexo na visão da fera olha
e se replica do oceano em cada bolha,
a musa antiga, das montanhas pegureira...
Esse símbolo arcano que os sumérios
não colocaram no seu calendário,
porém nas tumbas de seus cemitérios;
e que os maias, em seu vezo atrabiliário,
tomaram, ao contrário, por critérios
de um fim do mundo que assustou tantos otários!
SEIO DE RENDAS 5
Não tenho dúvidas de contemplar o sino
que toca apenas para meus ouvidos...
Quando tange das alturas seus tinidos
lembro os desejos dos tempos de menino.
Que ela tomasse forma, em campesino
iludir e partilhasse meus gemidos...
Beijos de prata em sonhos incontidos,
fosse qual fosse depois o meu destino!
Só imagino que, aos olhos da mulher,
essa coroa de luz se faça homem
e como Adônis formoso e sem defeito
chegue à janela e sem abrir sequer
esse raio de luz seus braços tomem
e o prendam toda a noite no seu leito!
SEIO DE RENDAS 6
Quiçá essa a razão das fantasias
que atormentam nas noites de luar:
que o lobisomem então venha a assombrar
ou então vampiros, no sangue das orgias.
Quiçá essa a razão das homilias,
o período feminino a amaldiçoar;
a impureza mesmo ao homem dar
que de um leito menstrual achasse as vias...
Que a Lua voga até sobre o monastério
e ao coração do monge encontra a senda,
mil desejos a invocar que vêm da infância...
Tudo pensado, melhor seja o mistério
da Lua envolta como seio, em renda,
mais intocável pela sua distância!...
FÉ MODERNA I – 22 JAN 14
Durante a Idade Média, as catedrais
sobre as cidades se erguiam, altaneiras,
mais altas que as demais, ânsias certeiras,
mais símbolos do povo que imperiais.
Que reis e nobres, em palácios triunfais
eram donos de seus átrios e das esteiras
de muralhas erguidas, sobranceiras,
deixando o povo a conviver com os animais.
Mas todos tinham acesso a tais igrejas,
desde que ali se portassem com respeito,
salvo o infeliz que à lepra era sujeito.
(Se fores santo, as suas chagas beijas!)
Mas ao contágio, sem dúvida, escapou
quem não foi santo, que tampouco o sou!
FÉ MODERNA II
Hoje se erguem os imensos espigões,
com desprezo a olhar para as babéis,
interligados por rodovias e anéis,
casas de vidro que abrigam multidões
e que convencem até mil corações
pelos anúncios luminosos e ouropéis,
pelas imensas telas com pixéis
da importância de novéis anunciações.
Erguidos bem mais alto que as igrejas,
feitas anãs, quando gigantes dominavam,
cada país demonstrando mais orgulho
no maior prédio do mundo seus desejos.
Com qualquer torre, se pudessem, alcançavam
a própria Lua, para seu esbulho.
FÉ MODERNA III
Quando Nimrod, poderoso caçador,
quis os céus atingir, em sua vaidade,
trouxe operários de toda a humanidade,
para as nuvens alcançar com seu andor.
Queria flechar deuses, com valor,
pois já abatera toda a bestialidade,
salvo a própria, que nutria, na verdade,
dentre seu coração cheio de ardor.
Porém agora os céus são mais distantes;
o que se quer é dominar planetas;
ninguém alberga as ambições secretas
de chegar ao Paraíso alguns instantes
em seu corpo carnal, por qualquer nave
ou que um furo no céu sua torre cave...
FÉ MODERNA IV
Ainda assim, se prostram muçulmanos
e dançam nos terreiros umbandistas
ou os dervixes, em suas perpétuas listas;
ainda se ajoelham os católico-romanos
ou os protestantes; mas há cultos mais profanos,
como esses dos partidos comunistas
ou aqueles dos fascistas e nazistas;
do futebol os fanáticos insanos,
todos da fé, arte ou ciência descartados,
nessa droga incolor do imediatismo,
em vidas secas de puro consumismo
ou então por videoguêimes dominados,
a que chamam, assim no mais, tecnologia,
iguais que fossem a moderna teologia.
ZIMBÓRIO I – 23 JAN 14
Antigamente, era comum roupa na corda,
a balançar contra o sabor do vento,
os prendedores contendo seu momento,
enquanto o próprio fio gira e transborda.
Ao mesmo tempo, sem que as grades morda,
um passarinho, em sua gaiola atento,
longo piava, a reclamar do seu tormento:
aves ao vento o seu lembrar recorda.
As roupas adejavam, sempre em movimento
e seus estalos talvez lembrassem canto.
Ficava o canarinho em seu poleiro,
imaginando haver ali contentamento,
porém as roupas pingavam, como em pranto,
só a água limpa do seu alvejamento...
ZIMBÓRIO II
Porém dançavam, sob o azul do céu
ou no zimbório infinito das estrelas
essas roupas multicores das farpelas,
sua corda erguida de um bambu no arpéu.
Para o canário, nas grades de seu véu,
havia liberdade só de vê-las:
dez aves livres a bailar singelas,
antes de às nuvens se lançar ao léu.
Só ele não podia!... E então, cantava,
na tola súplica que o viessem ajudar
os grandes pássaros, sua gaiola a abrir,
sem perceber que só o vento os agitava,
os prendedores firmes a pregar
roupas sem vida, pelo ar a percutir...
ZIMBÓRIO III
De sua gaiola o teto era o zimbório...
Bem mais que as roupas, ele tinha vida,
ainda que fosse por grades restringida,
por bebedouro contido o peditório,
o alpiste a servir-lhe de cibório,
ave gradeada em toda a sua corrida,
mas cuja fuga talvez fosse permitida
por um descuido ou erro mais inglório...
Enquanto as roupas livres que assistia,
em seu constante balouçar à brisa,
seriam levadas de volta à escravidão.
E se em momento um prendedor se desprendia,
num breve salto que a sujeira alisa,
só seriam livres para arrastar-se ao chão...
BRASA ACESA I – 24 JAN 14
Bem fundo ao coração guardo carvão aceso
que incomoda e palpita, diamante a reluzir;
queria este carvão, se o carbono o permitir,
fosse mesmo um diamante, da escuridão ileso.
Pois me queima o carvão que no peito inda está preso
e me arranha o coração tal diamante em seu bulir;
não queima um a si mesmo em seu constante refletir
e nem se corta o outro, por maior seja seu peso.
Porque eu mesmo sou carbono, ainda que seja impuro;
e assim um me consome, enquanto o outro dilacera:
que um procure me lanhar, o outro a sofrer me incite.
E em terceira alternativa no meu viver perduro,
sem o fogo do primeiro e sem os talhos da outra fera,
somente pingando versos em meu sangue de grafite.
BRASA ACESA II
No fundo do coração eu trago aceso o carvão,
que deveria ser negro, porém se mostra escarlate.
Trança cestos de minhas veias, em seu mister de açafate:
nelas guarda seus pedaços de flama feita emoção.
No fundo do peito aceso, carbono sob pressão,
em diamante se acrisola, enquanto a alma lhe bate.
Não sei o tempo que leva, nem o dia que lhe date:
ele gira desconforme, como as garras da paixão.
Já muitas vezes tentaram desprezar o meu carvão
e justamente ao contrário, furtar esse meu diamante;
não quero perder a chama, por demais que a alma grite,
não quero largar a jóia, por mais que rasgue o pulmão.
Carvão e diamante mesclo no mesmo limar constante
para o pó amarfanhar nos meus versos de grafite!
BRASA ACESA III
Eu trago um diamante aceso no fundo do coração
e tenho carvões em cacos, tão vermelhos quanto o aço,
dessa chama de minha forja, nessa cor de meu abraço,
carbono duro e macio em constante comoção.
Mas meus versos de grafite só quero na tua emoção,
pois não pretendo rasgar, nas palavras que te traço
caminho algum doloroso para meu incerto passo;
não anseio despertar fundo à alma exaltação.
A grafite de meu lápis se tornou computação,
as palavras nem existem e muito menos têm gume:
meu carbono vigoroso hoje é lêiser de silício
e se espalha pelos ares em perpétua irradiação,
a transmitir minha poesia e a combater tanto vício,
meu carvão riscando a pedra, meu diamante feito lume.
PROCISSÕES I – 25 JAN 14
TU TE LEMBRAS DAS MATRACAS QUE TOCAVAM,
ANTIGAMENTE, NA SEXTA-FEIRA SANTA?
AQUELE SOM QUE À DEVOÇÃO IMANTA,
COM QUE AS PENADAS ALMAS ESPANTAVAM?
TU RECORDAS OS ESTANDARTES QUE LEVAVAM,
FLUTUANDO DUROS, EM BORDADA MANTA?
DAS LADAINHAS QUE O DESAFINO CANTA,
EM QUE AS DEVOTAS FIELMENTE SE ESFORÇAVAM?
NÃO CARREGAVAM VELAS EM CAMPÂNULAS,
AS PRÓPRIAS MÃOS A PROTEGER AS CHAMAS,
SEM TER TAPETES PARA SE PISOTEAR,
MAS ONDULAVAM IGUALMENTE FLÂMULAS,
EM TRAJES RICOS DESFILANDO DAMAS,
SUAS DOMINGUEIRAS GALAS A MOSTRAR...
PROCISSÕES II
NAQUELE TEMPO NEM SEQUER O RÁDIO HAVIA;
OS DIAS SANTOS ENSINAVA O CALENDÁRIO;
POUCOS TINHAM MISSAIS E O RELICÁRIO
DE UMA IGREJA A OUTRA QUALQUER VISITARIA...
NAQUELE TEMPO O CLERO SE EXIBIA
COM SUAS ESTOLAS DE SIMBOLISMO VÁRIO,
SOBREPELIZES E DALMÁTICAS AO SANTUÁRIO
ALGUMAS HORAS ROUBADAS SE ASSISTIA...
NAQUELE TEMPO, A CIDADE SE ESVAZIAVA,
TODO O POVO ACORRENDO ÀS PROCISSÕES,
POIS NÃO HAVIA QUAISQUER OUTRAS DIVERSÕES,
ATÉ O COMÉRCIO INTEIRO SE FECHAVA,
PORQUE SOCIAIS HAVERIA PUNIÇÕES
A QUALQUER UM QUE A OCASIÃO DESRESPEITAVA.
PROCISSÕES III
NATURALMENTE, NÃO PARTICIPAVA DELAS:
SÓ LI NOS LIVROS OU CONTARAM MINHAS AVÓS;
XAIRÉIS E COLCHAS DE MUITOS ROCOCÓS
COLOCAVAM NAS SACADAS E EM JANELAS.
O CARNAVAL ERA RESTRITO A TRÊS NOVELAS,
AOS BAILES IAM COM MÁSCARAS E FILÓS,
PARA INICIAR DOS MATRIMÔNIOS NÓS
E ATÉ OCORRIAM DUELOS E PROCELAS...
HOJE EU ASSISTO ÀS NOVAS PROCISSÕES,
MUITO MINGUADOS OS NOVOS PEREGRINOS:
HÁ O FUTEBOL, TELEVISORES E OS MENINOS
FICAM EM CASA EM VIDEOGUÊIMES DE ATRAÇÕES,
MUITO MAIS GENTE NAS PARADAS MILITARES
OU OS FILHOS VENDO NOS DESFILES ESCOLARES.
PROCISSÕES Iv
HÁ PROCISSÕES DOS TIPOS MAIS DIVERSOS;
NELAS SE ENCONTRAM PADRES À PAISANA,
QUE A FÉ TROCARAM POR RELIGIÃO HUMANA,
PARA OS SEM-TERRA SEUS CORAÇÕES CONVERSOS.
HÁ PROCISSÕES POR MOTIVOS CONTROVERSOS,
PELA POLÍTICA QUE A PROTESTAR CONCLAMA,
PELA VITÓRIA DE UM TIME O POVO EXCLAMA,
QUEIMANDO ÔNIBUS NOS PROTESTOS MAIS DISPERSOS.
QUANDO O PAPA FEZ SUA PRÓPRIA PROCISSÃO,
REUNIU-SE GENTE DESDE O PONTO MAIS DISTANTE,
DE FORMA ALGUMA A CIDADE SE ESVAZIOU...
PORÉM NAS PRAIAS SE APINHOU A MULTIDÃO
PARA A QUEIMA DOS FOGOS, NESSE INSTANTE
EM QUE O ANO NOVO AO VELHO DESCARTOU!
FACETAS XXVI -- A CONSTANTE I – 15/7/06
Bondosa é essa mulher que enfrenta a vida
por toda sua existência e nunca pode
realmente vencer; e ainda acode
aos que estão ao redor, sem se sentir perdida,
porque percebe que, se a vida lhe fez mal,
foi ela quem deixou... e permitiu
aos outros dominá-la; e se iludiu
que poderia, em ser gentil, a esse fatal
destino de opressão mostrar firmeza.
Porque os outros nos podem controlar
e fazer o que querem, sem vergonha,
mas somos nós que os deixamos, por lerdeza,
e se soubermos, enfim, nos rebelar
só então se viverá quanto se sonha!...
A CONSTANTE II – 26 JAN 14
Existe muita mulher que foi treinada,
mais do que tudo, a obedecer a mãe e o pai;
e nesse instante em que de casa sai
leva consigo a característica indicada,
para mostrar-se submissa em sua morada;
a seu trabalho responsável sempre vai,
mesmo invisível, da firma sendo o estai;
sem gratidão, por seus filhos dominada,
do mesmo modo que o foi pelo marido;
de fato, em sociedades patriarcais,
são atitudes amplamente naturais:
é o que se espera sempre de ocorrido,
porque é de fato do seu pai a propriedade
e que é vendida a seu marido é bem verdade.
A CONSTANTE III
Mas entre nós, há muito não é assim,
pelo menos, na maioria das cidades;
contudo, sempre haverá necessidades:
muitas preferem ser flores de jardim,
o seu lugar determinado, enfim,
sem saírem do canteiro, por maldades
que lhes façam, por incapacidades
dos que deviam orientá-las, outrossim,
buscando mesmo serem dominadas;
se não o são, nem sabem o que fazer,
são torturadas ao tomarem decisões
e ao se encontrarem, de repente, abandonadas,
ficam perdidas nesse malquerer,
no torvelinho cruel das emoções.
A CONSTANTE IV
Contudo, se dependem dela os filhos,
encontra forças dentro de seu peito
e para sustentá-los, dá um jeito,
para educá-los nos mais corretos trilhos,
pelo menos, de acordo com seus brilhos;
mas não se entrega, não sente ter direito
de recusar o dever a que é sujeito
seu coração e se prende a tais atilhos;
de uma forma ou de outra essa tarefa
ela cumpre, na medida do possível,
algumas vezes, com sucesso incrível,
para a nova geração trazendo a ceifa,
como o núcleo que mantém a sociedade,
alicerçada em seu cerne de bondade.
A CONSTANTE V
Nem todas são assim. Sei muito bem
que há mulheres que descuram das crianças,
já de si abandonando as esperanças
(mas estas ficam para mais além);
e outras existem a encontrar também
o apoio necessário em suas avenças;
e ainda há aquelas que permanecem tensas,
pela falta de confiança que em si têm.
Eu me refiro aqui somente àquelas
a quem os homens e a vida maltrataram
e com filhos ou sem filhos superaram
a tristeza, a doença e outras mazelas
e no final, sobre tudo triunfaram,
por essa força interior que havia nelas.
A CONSTANTE VI
Existem muitas a se queixar da vida,
na decadência sutil de mil suspiros;
e existem outras que tornam seus respiros
na força necessária de incontida,
sabendo suportar cada ferida,
sem inculpar a outrem por tais giros;
qualquer coisa se resiste, menos tiros
que nos atinjam e cortem toda a lida.
Porque é certo que os outros nos maltratam,
que muitos pais nos educaram mal
e que patrões, sem razão, nos oprimiram;
porém nossos corações tais fios desatam
ao recusarmos essa opressão fatal
que nossas próprias fraquezas permitiram.
FALENAS CEGAS I – 27 JAN 14
Existe beijo de exigência violenta,
Premido por desejo ou por paixão,
Ansiando devorar, pura emoção,
A alma desse amor a que se atenta.
E existe beijo que mal e mal contenta,
Beijo apressado apenas, por noção
Indiferente a qualquer exultação,
Carícia apenas, fugaz e desatenta...
Beijo rotina, brotado do costume;
E existe ainda o beijo mais sincero
Dessa confiança pura em que se crê,
Totalmente desprovido de azedume,
Esse beijo que desejo e mais espero:
Carícia leve como um toque de nenê...
FALENAS CEGAS II
Há beijos longos, de se sorver a alma,
Beijos de fome, de desencarnação,
Beijos terríveis, carnais, sem ilusão,
Beijos que arrancam da vida toda a calma
E ainda há beijos de falena, alada palma,
Que as asas bate contra a queimação
De qualquer vela, contra o vidro do lampião
Ou na varilha de incenso que o ar embalma...
Há também beijos destrutivos, que nos matam,
Mais a tirar do que a nos conceder,
Beijos ferozes de desesperamento,
Que as papilas dos lábios nos dilatam,
Deixando marcas até o amanhecer,
A denunciar nossa ânsia de um momento...
FALENAS CEGAS III
E existem beijos tão somente transitórios,
Dados de graça, em pura indiferença,
Beijos vendidos em breve bemquerença,
Beijos sem fundo e beijos irrisórios;
Além de beijos tão só perfunctórios,
Fraco consolo, sem constância densa,
Beijos traidores em venenosa malquerença
Que enfim afastam-nos de si, peremptórios.
Pobres falenas em busca de tais beijos,
Que se queimam na própria frialdade!
Beijos de geada em seu queimor de gelo,
Subjacentes beijos de rastejos
De quem conserva em si toda a ansiedade,
Em tal desprezo que jamais eu queira tê-lo!
FALENAS CEGAS IV
E existe beijo que é apenas estalido
Ou mesmo esses que se dão em pleno ar,
Dois beijos falsos para a rival saudar...
Ou de carinho que no ar é transmitido:
Esse beijo que se agarra, desnutrido,
Meio sorriso, no bolso a resguardar,
Falena cega, sem frio, sem se queimar,
No calor morno que do peito é transmitido.
Porque os povos primitivos não se beijam;
Alguns deles, de fato, nem sorriem,
Dentes a mostra a interpretar como ameaça.
Ainda mais cegos tais beijos que se ensejam
Na incompreensão das vistas que se espiam
Enquanto um beijo no ar se nos retraça!...
toque de som I – 28 JAN 14
na labareda fortuita da memória
os quadros se repetem, desvirtuados;
aqueles fatos que mais nos são lembrados
são justamente os que mais fogem à história.
só lembramos as lembranças dessa glória
e a cada vez os pontos relembrados
são aqueles novamente contemplados
e não a imagem inicial da estória.
por isso, é até melhor quando esquecemos
os dias de alegria que perdemos,
até lembrarmos, em retrospecção
os detalhes que os formaram totalmente,
esse passado arraigando no presente,
em que a magia tem perfume de botão...
toque de som II
isso porque, na fina chama da lembrança,
vão sendo calcinados os desejos,
confusamente a misturar-se os beijos:
qual a boca cuja língua nos avança?
de quem a maldição que nos alcança,
na estranha mescla de todos os ensejos,
na girândola fugaz de mil adejos,
de quem os passos da mais antiga dança?
e como os nomes e rostos se embaralham,
após perdidos por uma simples década,
que o tempo rouba de forma assim tão rápida!
quantos abraços perdidos que se espalham,
como seixos à beira do caminho,
a badalar qual guizo pequeninho!
toque de som III
porque é o som que na lembrança toca
e traz à lume a chama desnudada,
toda fumaça novamente retocada,
outros arco-íris finalmente nos convoca!
a mesma melodia nos emboca
na caçapa, qual bola projetada,
nesse estalar de leve da tacada
cada ilusão no relance que se enfoca...
nesse antanho que se pensa ser o nosso,
mas que é baraço do alheio liquefeito,
o nosso bafo de mistura a estranho alento,
e os sons tilintam dentre o mesmo fosso,
batendo mais de um coração no mesmo peito,
enquanto o ouvido só recorda o vento.
MENTE-ME OUTRA VEZ I – 29 JAN 14
Na liberdade branda da memória incompetente,
a chuva sobe, terra ao céu e, lentamente,
o sol escuro esparge a noite num tapete
e a nuvem corre o vento num repente...
A areia cresce e bota flor depressa
e as árvores o chão percorrem, sem ter pressa;
a Lua queima o solo e sob o mar se mete;
cresce a semente dos animais, espessa...
Poreja assim meu sangue e o suor escorre
e a carne encobre a pele e caem os olhos,
deixando em seu lugar lágrimas secas,
e pela noite meu passado inquieto corre,
em direção ao nascimento e a meus refolhos,
girando a morte na falsidão das becas.
MENTE-ME OUTRA VEZ II
Tampouco tu recordas tom exato
de tantas transcorrências do passado,
a refeição um desjejum embaralhado,
cada ocorrência de mistura a alheio fato.
É só a lembrança do último contato
que se demonstra fiel no terminado,
tudo mais tão somente assemelhado
nesse novelo de emoções e desacato.
A cada vez que o ontem recordamos
é somente a sua lembrança que guardamos,
já revestida de seda e celofane...
Que apenas pensas lembrar o que ocorreu,
pois noutros atos já se intrometeu
e ao ser antiga, tanto mais se empane...
MENTE-ME OUTRA VEZ III
Assim, quando me dizes o que pensas
do que pensas que de fato te ocorreu,
já não recordas o quanto sucedeu,
porém camadas de lembranças densas;
então mentes a ti mesma, nessas tensas
películas superpostas do que é teu,
iguais aos celuloides do que é meu,
véu de emoções em cada ato que repensas.
De minha parte, mentirei a minha verdade,
da parte tua, igual verdade mentirás
e concordamos com o aparo das arestas.
Ou discordamos, com maior intensidade:
recordarei o que não recordarás,
nos redemoinhos por detrás de nossas testas.
MENTE-ME OUTRA VEZ IV
E quanto mais nos entranharmos no passado
mais diferente será a nossa percepção;
nossas lembranças de infância uma ilusão,
só fragmentos do que foi já relembrado.
Pois da demência o seu maior pecado
é do presente assistir dissolução...
Sobre a memória de longa duração
há um filme impuro tantas vezes retocado...
Pois só nos resta a memória incompetente
a proteger-nos num falso paraíso,
tanta coisa apagada em novo inciso...
Enquanto o cérebro mente à própria mente
e mente a mente, com o mais sincero viso,
para este jato transitório do consciente...