"...Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios."
( Manoel de Barros in: Mémórias Inventadas)
Detalhes
Em mim também tenho um atraso de nascença
não sigo o tempo de todos
fui extemporânea desde sempre
mas sem alarde
sem panfletagem
sem revolta
Aprendi nos silêncios dos quintais
nos ocos da existência
que clemência não faz barulho
compaixão também não
vi beleza nas hortaliças
e nos pés de araticum
assuntei as histórias de amor
não os das telenovelas
nem dos folhetins
disputados pelas moças casadoiras
O amor que vislumbrava
numa história contada à meia -boca
era percebido no tom de sussurro
no esboço do sorriso
e no brilho do olhar
Ah essa calmaria
esse jeito comedido de ser!
Sempre me senti atraída
pela não-explosão
pelo que não é óbvio
pelo que dá trabalho de se revelar
São os detalhes que me conquistam
são as minudências que me fascinam
O meu quintal também é maior que o mundo
e aprecio a velocidade das tartarugas
E se por um lado pareço espavorida
minhas emoções seguem outro ritmo
se espicham como lagarta preguiçosa
rumo ao sol
se prendem a um passarim multicor e atrevido
que pousa na minha janela assuntando meu despertar
Como o grande poeta
tento ser
"um apanhador de desperdício"
colhendo um sorriso que apenas se esboçara
uma mão que se estendeu e parou no caminho
uma palavra de carinho que ficou pela metade
um abraço contido
um suspiro dobrado
uma lágrima interrompida
pela presença de alguém
Mas ainda ouso fazer o contrário
e semeio sementes raras
que não desabrocharão em coloridos
variados
nem resultarão em perfumes sedutores
cultivo em meu coração
meus quereres multiformes
minhas nostalgias atemporais
minhas saudades variadas e ternas
Assim vou me inventando e reinventando
sendo mulher que ama e crê
que desconfia
que se atreve
que recua
e que avança o sinal
e nessa invencionática de mim
me reconheço tal qual a Maria
do mercado
a Joana da praça
a Luísa da praia
pois nas nossas minudências
somos mais iguais que diferentes
e como toda a gente
seguimos em busca do Amor
seja ele qual for