UMA CARTINHA DA ILHA PARA UM AMOR DE FORA
José António Gonçalves
não posso cumprir
o que te prometi
meu amor
eu confesso
de tantas coisas
alembradas:
na ilha não existem planícies verdes
nem prados a perder de vista
e temo-nos de contentar com o mar
e os seus abismos de escuridão profunda
com uns penhascos de gaivotas
e um colchão de penas antigas
para nos aconchegarmos à noitinha
e trocarmos os beijos
de há séculos combinados
aquecidos com um luar de sal
e rimas de cantigas
não posso cumprir as cavalgadas
por pradarias extensas
de olhar perdido
por horizontes inalcançáveis
onde viajam comboios fumegantes
nem por visões magníficas
de continentais destinos
não posso cumprir
por aqui há os vulcânicos rochedos
as grutas escavadas nos socalcos da lava
a terra separada por muros de pedra
e os frutos maduros do sol de inverno
umas ribanceiras fugindo para o calhau
umas fajãs de águas mansas
e uns casebres com saudades do colmo
e algumas almas presas às encostas
despojadas das velhas ambições
do desejo de partir
não posso cumprir-te nada
meu amor
do que porventura
te tenha prometido
apenas o silêncio de uma aventura
por vales e desfiladeiros
e um bem-querer desmedido
desenhado
na bruma de um sonho
de que não se sabe acordar
e para além do que não conheças
uma ânsia crescente de ficar
no coração do vinhedo
do casario banhado pelo crepúsculo
bordado em toalhas brancas
com as linhas azuis do oceano
e a espuma
das ondas inquietas
por isso te escrevi esta cartinha
para que não fiques triste
nem me esqueças
se não apreciares um dia
o viver
no paraíso dos poetas
e envio-ta
nas asas dos milhafres
agasalhados nas desertas
para que não
se perca
(inédito.28.08.04)
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