GUALTER, O PESCADOR

(A ANTÔNIO MANOEL DOS REIS)

I

Sobre as ondas de anil do mar profundo

Surge a esfera de luz, banhando as plagas

De esplendido clarão;

O mundo acorda, e a natureza escreve

Um canto ainda sobre o livro eterno

Da imensa criação.

É dia. Agora nos sertões remotos

O caçador embrenha-se cantando

Da serra nos desvios,

O lenhador abala o mato virgem,

E a patativa se desfaz em trinos

Junto á beira dos rios.

É dia ! É dia ! — E haverá quem durma

Quando a terra palpita de volúpia,

Aos afagos da luz?

Quando a abelha desmaia sobre as flores,

As flores sobre o vento, e o vento errante

Sobre as ondas azuis?

Olhai: lá em baixo, na arenosa praia

Onde a vaga indolente se espreguiça

Bocejando n'areia,

E os manacás trasbordam de perfumes,

E a viração nas pitangueiras úmidas

As folhagens meneia.

Junto à cabana, com a rede aos ombros,

O moço pescador contempla o céu

E se apresta a partir;

De um lado a esposa busca em vão retê-lo

E o louro anjinho que sustem no colo

Brinca e põe-se a sorrir.

— Não partas hoje, diz a moça pálida,

Em cujos olhos divinais se espelha

A candura do céu;

— Porque, minh'alma?

— Deus! Não sei, mas sinto

Meu coração que anseia entristecido

Dos presságios no véu!

— Que loucura! Não vês?... O mar é calmo

Como nossa filhinha que em teus braços

Balouça-se contente;

E á flor das águas os peixinhos pulam,

Reluzindo as escamas prateadas

À luz do sol nascente.

— Ah! Gualter! Gualter, eu não sei que tenho,

Mas voz sinistra me murmura n'alma

Que não deves partir!

— Não te aflijas, querida, diz o moço

Afagando-lhe a fronte; e os outros dias

Não se faz ela ouvir?

— Sim, toda a vez que nesse lenho estreito

Vejo-te ousado abandonar a pátria,

Tenho sempre terror!

Mas hoje mais que nunca!... Oh! Fica... Fica,

Eu te imploro por mim, por nossa filha,

Por todo o nosso amor!

O mancebo concentra-se. Uma sombra

Parece à testa lhe enrugar de leve

E os olhos enturvar;

Porém cedo sorri, ergue a criança

Do regaço materno, e entre carinhos

A começa a beijar.

— Então não partes?... Diz a esposa alegre

A rede lhe tomando.

— Oh! Não, não posso,

É preciso ir ao mar.

- Meu,Deus!—Que queres?Amanhã, responde,

O que havemos comer? A moça cala-se

E se põe a chorar.

Ah! Misero d'aquele a quem no berço

O arcanjo da opulência, abrindo as asas,

A fronte não roçou!

Pomos vedados são da vida os gozos,

E a taça de hidromel torna-se em lúpulo

Apenas a tocou!

Sonhar no ermo, no palmar quem sabe?

Ou sobre as relvas esquecidas horas

Em delicias de amor;

E ter por sócia uma tristeza eterna,

E em vez de afagos que sonhara ardente

Suarento labor!

Mais doce agora rumoreja a brisa

Das níveas flores dos ingás viçosos

Juncando o branco chão;

O moço se prepara: é belo o vento,

Rico e fértil o mar. — Esther, sossega,

Não me detenhas, não!

Chorosa e triste a meiga esposa o segue

À longa praia, onde o batei esguio

Vai e vem sobre a vaga...

Beija-lhe a fronte; diz-lhe adeus e clama

Até que a vela abandonando a terra,

No horizonte se apaga!

..................................................................................................................................................................................................

Põe-se o sol. Merencório o céu se tolda

Em véus de brumas, que, deixando os montes,

Desenvolvem-se aos poucos:

Ligeiras virações o mar encrespam,

E um cardume de pássaros se arroja

No espaço em pios roucos.

......................................................................

Vós que vindes do sul, oh! Níveas garças,

Beijando as ondas que o calor amorna,

Dizei, dizei o que anuncia o vento

Que mais velozes vossas plumas torna?

Dizei que sombra funerária é essa

Que as cores mancha da cerúlea tela,

E as fundas rugas que a tremer se cavam

Do salso império sobre a face bela?

Oh! Não mintais! Se a tempestade é perto

E o mar à luta os vagalhões prepara,

Quero contrita me prostrar chorando

Aos pés da Virgem que os mortais ampara

Dizei, dizei o que anuncia o vento

Que mais velozes vossas plumas torna,

Ligeiras garças que do sul partistes,

Beijando as ondas que o calor amorna!

......................................................................

E a tribo errante que atravessa o espaço

Vai sobre as azas de irritados ventos

Perder-se n'amplidão;

Sentada á porta contemplando as nuvens,

Esther mostra no rosto descorado

As sombras d'aflição!

Pesadas massas de profundas trevas

Vão pouco a pouco se ajuntando e rolam

Entre surdos rugidos!

Os relâmpagos surgem, passa o vento

Da selva escura arrebatando aos cedros

Funerários gemidos!

De mais a mais o espaço se escurece,

Repetem-se os trovões, o mar inquieto

Fustiga as penedias,

Um dilúvio de queixas e bramidos

Percorre os ervaçais e vai perder-se

Nas longas serranias!

Ai! O moço não vem; tremula a esposa

Corre á praia assustada e os olhos crava

Ansiosos no mar!

Mas apenas divisa em fúria insana

Vagas e vagas que, encurvando o dorso,

Vão aos céus topetar!

Então busca a çhoupana. Junto ao leito,

Uma imagem da Virgem se levanta

Em doce compunção;

Esther acende um círio e de joelhos,

Apertando a filhinha ao seio opresso,

Murmura esta oração:

Oh branca rosa do céu,

Oh bela estrela de amor,

Que no teu cândido véu

Sorris aos pés do Senhor;

Tu que dos anjos cercada,

Lá no empíreo da luz,

Beijas a fronte adorada

Do condenado da cruz;

Volve, volve brandos olhos

Sobre os míseros que a sorte

Por entre horrendos escolhos

Leva aos abismos da morte!

Curva-se o mato gemendo,

Cobre a terra escuro véu,

O mar arroja tremendo

A fria saliva ao céu.

Mas ai! Que talvez, Senhora,

Quando o raio estronda e cai,

A esposa viúva chora,

Chora a filhinha seu pai!

Oh branca rosa do céu,

Oh bela estrela de amor,

Tu que em teu cândido véu

Sorris aos pés do Senhor...

Volve, volve brandos olhos

Sobre míseros que a sorte

Por entre horríveis escolhos

Leva aos abismos da morte!

Um momento o oceano, a terra, as nuvens

Parece que emudecem os tufões

Abafam seu rugir,

O horizonte clareia, as brisas passam,

E uma réstea de luz rasgando o espaço

Faz a onda sorrir!

Sinta Virgem do céu! Eu te bendigo,

Eu te bendigo, oh Deus,

Que ouviste minhas preces e lamentos

Que ouviste meus...

II

O temporal rebenta! Escuras vagas

Pulam sem freios nas marinhas plagas

Como nos ermos os corcéis bravios

Tombam torrentes d’amplidão do céu

Os ventos berram do bulcão no véu

Em longos tresvarios!

É tarde, há muito nos ferais negrumes

O sol sangrento mergulhou nos numes.

Bem como um brigue devorado em chamas,

A terra anseia, os pinheirais se abalam,

E das florestas os titãs estalam

Lacerados, sem ramas!...

Ah! Mancebo, onde estás? Com que perigo

Nas altas vagas sem governo e abrigo

Lutas ardentes, mas talvez em vão...

E os gênios surdem com tremendos laços,

E a morte fria te sacode os braços

Nas asas do tufão!

Tremente em prantos, abatido o rosto,

No olhar a chama de cruel desgosto,

Corre a esposa infeliz á longa praia;

Mas ai! É negro o céu, raivoso o mar,

É nesse caos que volve-se a bradar

Debalde a vista espraia!...

Meu Deus! Senhor meu Deus! Tudo é perdido!

Murmura a triste em túrbido gemido

E se arroja chorando sobre o chão...

O vento chora de a enxergar talvez,

E a onda imensa vem beijar-lhe os pés

Rasteira como um cão!

Mas silêncio! Das vagas no conflito

Súbito se ouve um pavoroso grito!

Ergue-se a moça, qual ferida corça,

Sacode as tranças, o vestido agita,

E o louco impulso de su'alma aflita

Por comprimir se esforça.

É ele!... É Gualter!... — levantado à proa

Move aturdido a tremula canoa,

Que anseia e salta na fervente espuma

Que as ondas cospem sobre o lenho ousado...

E o vento envolve o pescador cansado

Na mortalha da bruma.

— Eia!... Não temas! Reza a Deus e aos santos,

Brada a consorte desvairada em prantos,

Medindo em ânsias a distância imensa;

Mas o mancebo desespera e clama,

E nos seus olhos relampeja a chama

De lívida descrença!

Oh! Se há um Deus que o valha! As penedias

Erguem-se perto ríspidas, sombrias,

Do mar sanhudo ao desabrido açoite,

Bulcão medonho sobre o abismo desce,

E o batalhão da morte aumenta e cresce

Na caligem da noite...

O batei vai e vem, retalha a espuma,

Some-se ás vezes no lençol da bruma

E vai girando topetar no céu;

E o moço exausto na vertigem louca

Lança á praia uma queixa insana e rouca

Através do escarcéu.

Oh! Piedade!... Piedade! Exangue, fria,

Grita a infeliz nas sombras d'agonia;

Mas n'esse instante ruge o furacão,

Ergue-se um grito, horripilante, extenso,

Um clamor dolorido, eterno, imenso,

Dos mares n'amplidão!

Esther... Adeus p'ra sempre!... O raio passa,

E a luz vermelha que o oceano abraça

Entre vozes de horror some o batei,

E os ventos berram nas espumas frias,

E as vagas brigam funerais, bravias,

Nos ombros do parcel!

Tudo findou-se!... Sem calor, sem vida,

Ei-la mártir de amor no chão caída:

Na solta areia que a tormenta orvalha

A onda chega... depois foge em prantos,

Depois a leva com funéreos cantos

Na úmida mortalha!...

III

O Arcanjo de Deus, que lá no Empíreo

O livro guarda do fatal destino

E a morte de Esther traçado havia

Com letras ígneas na sangrenta folha

Ia gravando vagaroso e lento

O nome do mancebo; mas de súbito

Uma ideia lhe surge, a mão vacila,

Volta ao começo da funérea página

E com trêmulo dedo apaga as letras

Que tinha começado!...............................

Inda era cedo! No trevoso drama

Inda uma cena de terror faltava!

O mancebo está salvo! Ai! Quem dissera,

Poupando a vida, que amargor prepara

O negro gênio que desdobra a teia

E a vida tece dos humanos seres!

Sim, o moço está salvo! Nos abismos,

Roto, em pedaços, o batei repousa,

Mas na luta infernal, no doido giro

Em torno á penedia, o acaso, a sorte

Ao duro embate o pescador lançara

Sobre um tecido de marinhas plantas

Que as frias bases do rochedo enlaça.

Foi quando aos lábios lhe escapou tremendo

Aquele adeus final, e o frágil lenho

Para nunca se erguer baixou em lascas

No seio imenso da cruel voragem.

Longo tempo sem forças, desmaiado,

O moço fica nessa movei cama,

Circulado de espuma e de ardentias...

Mas pouco a pouco a vida vem tornando

E com ela a razão, a calma, o animo :

E' forçoso pensar, buscar a praia,

Ver a filhinha, sossegar a esposa

Que ha poucas horas no terror da morte

Longe, perdidas para sempre cria!

Louca esperança!... Iluminado sonho,

Miragem de ventura em céu de sangue,

Poucos instantes durarão teus brilhos!

Como as lavas ferventes do Vesúvio,

Como os fogos do raio que rebenta,

Surge, claras, e ao depois só deixas

Um rastilho de cinzas e betume!...

Gualter está na praia, às vestes rotas,

O corpo gotejante, os nervos trêmulos,

Sacode-se ofegante, como a lontra

Na borda da torrente, lança um grito

De júbilo e triunfo, e acelerado

Arroja-se à habitação!

Mas um triste chorar chega-lhe ao ouvido!

Um chorar de criança, débil, fraco,

Repassado de angustia!

— Oh! Minha filha!

Oh! Filha de minh'alma! Grita o moço.

Mas nesse instante, do palmar no cimo,

Ave de morte desprendeu seu canto,

E as asas negras sacudiu na sombra!

O pescador se benze, e o calafrio

Uma por uma lhe percorre as fibras,

Apressa o passo mais, a cada instante

Tropeça e pára, respirando em ânsias

0 quente bafo que a tormenta exala.

-Esther! Vem, que aqui'stou! Grita o mancebo

Arquejante, cansado...- Ai!... Tudo é surdo!

As folhagens se agitam suspirando,

Soltam as aves desabridas queixas,

E nesse mundo que delira e clama,

De quando em quando ao perpassar do vento,

Mais fraca e triste, mais pungente ainda

Vem dolorida a voz da inocentinha!...

Onde está tua mãe que não te escuta?

Onde está tua mãe?... Porém, oh! Céus!

Um medonho trovão brame no espaço,

O raio passa e vai morrer na onda

Tenaz, imensa, devorada em chamas

Que referve na espuma que a circula.

Uma ideia sinistra e lutulenta,

Como essa frágua que queimara a nuvem,

Roça n'alma do moço que se esforça;

Vence a fraqueza que lhe vai no corpo

E corre e voa, e vai chegar sem fôlego

À porta da cabana.

— Esther! Exclama,

Porém nada responde; a ventania

Braveja no ervaçal, sacode-as plantas

E da mísera choça invade as frestas

Em longos assobios! O mancebo

Faz um supremo esforço, impele a porta

E se arroja de um salto no aposento!

Mas,oh! Quadro de horror!Oh!Negro quadro!

Esther não está. Entorpecida, fria,

Cansada de chorar o pobre anjinho

Estremece no chão, molhada e nua!

Uma vela de cera amarelenta

Sob denso morrão crepita e chia

Junto à imagem da Virgem que tranquila

Olhos postos no céu, sorrir parece!

Santa esposa de Deus!... Mulher divina

Que do abismo da morte ergueste o homem,

Consolo dos mortais, doce refúgio

Das almas tristes que o pesar lacera,

Como agora és medonha!... Oh! Como agora

Desse pálido círio á luz mortiça

Enches de horror e fúnebres angústias

Tudo quanto te cerca e te contempla!

Hirtos cabelos, convulsivos lábios,

O mancebo se arroja de joelhos

E nos braços levanta a pobre infante.

Oh! Fala! Falia!... Desditoso anjinho,

Triste filha do amor e desventura,

Onde está tua mãe? Oh! Fala!... Fala!

Mas ao brando calor do peito amigo,

Ao doce bafo que lhe aquece o rosto

E a vida incute nas geladas veias,

Abre os olhos azuis a inocentinha

E ri-se, e brinca nos paternos braços!

— Grande Deus do universo! Tem piedade,

Exclama o pescador; e em frias ânsias

Sai da cabana e se arremessa à praia

Em altos gritos acordando os ecos!

....................................................................

Vai serenando o mar; do céu as sombras

Fogem aos poucos, as estrelas surgem

E brilham vivas como abelhas de ouro

Nas fundas dobras do cerúleo manto...

A floresta se cala e o vento brando

Suspira a medo nas folhagens úmidas,

Como um povo de silfos que ressona!

A tormenta cessou, mais ai! Na terra

As tormentas do céu são as menores!

Uma réstea de luz às domai e pisa,

Como ao bravo corcel que o freio abate;

Mas as que surgem nos humanos peitos

E a vida cavam os medonhos choques,

Essas são longas, eternas, sem luzes,

Nem brisas, nem manhã, que a fúria apague!

Mas silêncio!... Silêncio! A noite é calma,

O oceano cansado, e a natureza

Em seu leito de paz adormecida...

Porém que vozes doloridas, tristes,

Erguem-se agora lá da praia extensa

E os ecos pejam de agonia e morte?

Oh!... Sim, que é ele... O pescador! Não vedes,

Qual sombra foragida que alta noite

De um ermo cemitério á lousa foge

E vem de horrores espantar as plagas?

Escutai, escutai ao som pungente

Dessa voz funeral, enrouquecida,

Não ouvis outra voz mais triste ainda,

Bem que mais fraca, levantar-se aos ares

Débil como o chorar da rola exangue,

Treda como o tufão em chão de campas

Os chorões desfolhando, ou como a queixa

Que o sopro de além túmulo desprende

Dentre a infância e a morte?...Oh! É medonho!

Agora, ao cimo do rochedo erguido,

Ei-lo de pé convulso, desvairado,

Medindo o abismo e apostrofando as ondas:

— Onde está minha esposa?... Onde está ela,

Vagas profundas que dormis no abismo?...

Dá-lhes voz, oh meu Deus! Porque minh’alma

Se torce em ânsias de infernal martírio!

Mas o mar não responde, em pranto apenas

Lança um manto de espumas no rochedo

E borrifa-lhe os pés, e no seu peito

Mais triste, e fria a criancinha chora,

E os bracinhos de neve estendem ao pego!

O céu é puro e belo, uma só nuvem

Não turba o esmalte do zimbório etéreo,

Tremem os astros, e a nevada estrada

Nas campinas de azul se estende bela

Como facha brilhante, ou como a senda

Que os anjos leva ao venturoso Empíreo,

O pescador se cala e nos seus olhos

Chama sinistra transparece o brilha,

Contempla os astros e as tranquilas ondas

E um sorriso satânico lhe passa

Pelos gélidos lábios, cerra ao peito

A criança que se cala inanida

E senta-se na rocha...

Mas, oh! Céus!

De súbito no espaço, pelejantes

As estrelas se apagam: dir-se-ia

Que um dilúvio de sombras as devora...

O oceano se abafa e em negros urros

Meteoro de sangue abrasa o espaço

E se afunda fervendo no oceano.

Um mundo inteiro de rugidos, gritos

Levanta-se do abismo, as vagas crescem

E em longas serranias vem correndo

Da voragem fatal que o fogo abriu.

Depois tudo se cala. No infinito

As estrelas despertam-se mais vivas,

0 oceano se acalma e junto às rochas

Uma onda indolente que se estende

Arroja aos pés do moço transviado

Alguma coisa de medonho, informe,

Pavoroso, infernal, que o faz de um salto

Levantar-se convulso, o olhar em brasa

Como impelido por um férreo braço!

-Esther!... Esther!...

O oriente aclara-se,

Unia réstea de luz inunda o céu,

As águas brincam, balanceia o vento,

Mas uma queixa imensa, uma blasfêmia

Embebida de fel, de sangue e lodo,

Um grito de Satã se ergue da terra

Entre débil chorar!...

Tudo findou-se!

As estrelais desmaiam de agonia,

Entoa o vento fúnebres sussurros,

E nas rochas escuras que se elevam

Uma linha de sangue inda espumosa

Goteja e corre e vai sumir no abismo.

Mais bela ainda a natureza acorda,

Tudo é silencio e paz sobre o universo.

O mistério da morte, esse findou-se;

O oceano é discreto, e o que ele encerra

Dorme no sono de profundo olvido.

Dentre as grimpas azuis, entre neblinas

A lua vem se erguendo branca e pura

Como a odalisca que se eleva pálida

Das banheiras de marmor do serralho!

— Boa noite, belo astro! Ergue-te asinha!

IV

— Onde vais, ancião?... Que pranto é esse

Que dos olhos te corre e as cãs te orvalham?

Que amargura te oprime?

— Ai! Não indagues!

Deixa que eu chore, que o chorar que verto

Sai das chagas da alma!

— Fala velho;

Teu corpo treme, teu falar é rouco,

Cortado de soluços, no entanto,

Os invernos gelaram-te os cabelos,

E as tormentas de um século, quem sabe?

Envergaram-te á terra, a fim que busques

O frio leito do final descanso!

Fala ancião... Que mágoa te espedaça

E remorde-te assim!

— Ai! Não indagues!

Lança os olhos á praia e a Deus pergunta

Porque se apaga a estrela, a flor definha,

O arvoredo emurchece e a humana vida

Entre sangue e loucura erra e desmaia.

— Grande Deus do universo!... São dois corpos!

Um corpo de criança!... Oh! Como o sangue os cobre e desfigura!... Fala velho...

Fala... Conta...

— Ah! Tem piedade,

A dor me despedaça, e em breves dias

Talvez minh'alma os seguirá bem cedo!

Amei-os mais que a mim! Desde criança

Acalentei-a aos joelhos. Junto ao fogo

Em noites hibernais unida ao colo

Fazia-a dormir entre cantigas!

Vi-a crescer, crescer, como a palmeira,

Sempre junto de mim, até que a idade,

A afeição... O amor m'arrebatassem!

Conduzi-os á igreja, abençoei-os...

Mas ai!... Eles não vivem, nem tão pouco

0 pobre anjinho que eu levei á pia

E embalava em meus braços! Hoje mesmo

Desci a serrania, vim buscá-los,

Vô-los ainda, que meus longos anos

Há muito tempo m'os roubava aos olhos...

Porém tudo findou-se... Oh! Tudo... Tudo!

Amaram-se e viveram puros, belos,

Como as aves do céu e as plantas meigas

Que o sertão embalsamam de perfumes

Amaram-se e viveram como as flores,

Mas tiveram por leito derradeiro

O fundo escuro de medonho abismo!

— Viajor que chegais, orai por eles!

.............................................................

O tempo corre e com seu manto imenso

Varre o dia e a noite, o mês e o ano,

Mas das ondas azuis o navegante

Saúda a imagem de uma virgem santa

Que em seu nicho de pedra alveja ao longe

Na crista do rochedo. Três vezes santa!

D'onde esse emblema de humildade veio,

Oh! Quem não sabe remontando á lenda

Do pobre pescador?...