FRAGMENTOS
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Por ela me despi dos áureos sonhos
Que a flor da mocidade abrilhantavam,
Por ela reneguei meu Deus e crenças,
Por ela abandonei meus pátrios lares,
E nas fráguas do amor e da saudade
Vi minha vida desfazer-se em fumo!
Como o perfume que transpira, à noite,
Da margem da lagoa a flor mimosa
Vai deleitar o viajor que a névoa
Desorienta da campina extensa,
Vinham amenizar lembranças dela
A sóbria tristeza de minh’alma!
De plaga em plaga como o hebreu maldito
Refugiei-me em vão, buscando d’alma
Expulsar o pesar que me roia!
Mendiguei um alívio ao céu de Itália, Aos cantos do barqueiro errei à noite
Nas ondas perfumadas de Sorrento,
Adormeci na encosta do Vesúvio,
E visitei as lúcidas paragens
Onde Laura e Petrarca suspiraram.
Mas era embalde!... Nem o céu brilhante,
Nem o meigo sorriso, o olhar de fogo
Da bela italiana, nem os cantos,
Nem os festins ruidosos de Veneza
Sanar puderam de meu seio a mágoa,
E a dor pungente que ia fundo n’alma!
À loura Grécia dirigi meus passos,
Adormeci à sombra dessas ruínas
Onde envolto em seu manto de descrença
Lord Byron vagou... Abri meu peito
Às vozes divinais de antigas eras,
E no sopro das brisas que passavam
Ouvi o coro de milhões de deuses
Que das balsas floridas levantavam-se
À minha invocação; de Tempe ao vale
Fui aos ecos pedir os doces cantos
Que ali ditosa repetira Safo
Nos braços de Phao; e, no entanto
Em vão minh’alma se engolfar buscava
No livro do passado, em vão meus lábios
Murmuravam canções de seus poetas!
O pesar me seguia mudo, frio,
Horrível como um plúmbeo pesadelo!
Deixei a Grécia. Às regiões ardentes,
Onde nuvens de areia o ar percorrem
No solio do zenith o sol nublado,
Onde lenta caminha a caravana
Abrasada de sede e de cansaço,
Fugindo ao tédio de uma vida eivada,
Como Harold ou René, lancei-me triste,
Cercada a fronte de trevosas nuvens.
Descansei sob as tendas do deserto,
Matei a sede de meu peito em fogo
Nas águas lamacentas das cisternas,
E após, deixando os areais sem termos,
Embrenhei-me nas selvas seculares
Lá onde à sombra de soberbos cedros
Dormia a solidão seu sonho imenso!
Os urros do simoun, o murmúrio
Da folhagem da selva, o mundo todo
Desse vasto poema do deserto
Falavam-me de dor e de amarguras,
Negras saudades me acordavam n’alma!
Vaguei nos mares à tormenta exposto,
Vi diante dos pés o oceano e a morte,
E meu frágil batel arrebatado,
Ora no dorso de espumosas vagas
Ir doudejando topetar nas nuvens,
Ora no abismo se afundar gemendo!
Abrindo as asas negras sobre os mares
Corria o furacão rugindo em fúrias,
Como o anjo da morte! No infinito
A orquestra da tormenta ribombava
Horrível e sublime! O céu rugia,
As serpentes do fogo se enroscavam
No espaço abraseado, as ardentias
Referviam no abismo escancarado
Como os lumes que em breve me esperavam
Na tumba imensa de revoltas águas!
E enquanto os mastros a estalar caiam
Ao roçar da tormenta, enquanto os nautas
Prostrados ao convés a Deus clamavam
Ante a agonia, a tempestade e a morte,
Pedindo as vagas, olvidando tudo,
O nome dela eu murmurava em prantos.
Dos abismos à flor, como Manfredo,
Os gênio invoquei, vertiginoso,
P’ra que lançassem de minh’ alma aos ermos
De mim mesmo, um profundo esquecimento...
Pedia Deus um existir de bruto,
Matéria impura sem pensar nem dores...
Mas nem um gozo iluminou-me a vida,
Nem uma fonte límpida e serena
Rebentou pelo Saara de minh’alma!
Errei pelas paragens encantadas
Onde à sombra de um bosque de palmeiras
Regatos correm de serenas águas...
Ouvi a ave sonora se embalando
À morredoura luz de amenas tardes
Lançar gorjeios de saudade infinda...
P céu de azul me iluminava a fronte
Com torrentes de luz, as flores todasMe incensavam de aromas suavíssimos.
Mas o riso da flor, o som das brisas,
A criação pejada de perfumes
Contando aos astros em linguagem doce
Suas lendas de amores e sorrisos
Não podiam sequer matar-me n’alma
O negro viso de uma dor sem termos!
De deserto em deserto se acampando
Os pastores da Arábia a vida passam;
Como eles vagabundo, eivado o seio,
De dor em dor com vagarosos passos
Atravesso os desertos da existência!
Cansado de lutar sobre esta vida,
Senti um dia esmorecer no crânio
A centelha da crença e da esperança.
Por altas noites, na mansão dos mortos
Quando a terra dormia, mergulhado
Em negro pesadelo, errei sombrio,
Os mistérios da campa interrogando.
-Haverá outra vida?... Após a morte
Irei eu habitar um novo mundo
Onde não sinta os desprazeres deste?
Eu filho da matéria e escravo dela
Serei em breve reduzido a lodo,
Após haver tragado em brônzea taça
Tanto fel e absinto?... Assim clamava
Colando sobre a terra dos sepulcros
Minha fronte incendida pela febre.
Mas lá de longe, lá no céu, quem sabe?
Vinha uma voz ungida de saudades
A harmonia da fé lançar-me n’alma,
E a flor das esperanças moribunda
Alimentar com tímidas promessas!
Era ela! Ela sempre! À noite, ao dia
No sono ou na vigília!... Amiga sombra
Incessante visão da felicidade,
Presente sempre em meus cansados olhos
Na penosa jornada deste mundo!
Anjo de meu amor! Filha de Deus!
Porque me infliges o cruel suplício
De ver-te sempre, de abraçar-te nunca!
Ligeiras nebulosas que habitais
Sobre os mares de éter, róseas nuvens,
Fúlgida estrela que a manhã nascendo,
Desperta o viandante nas estradas,
Astros gigantes, espantosos mundos
Que girais no infinito!... Oh! Em vós todos
Eu parecia vê-la! Ora divina
N’um oceano de névoas flutuando,
Ora adejando na região das luzes,
Ora no espaço que a razão apenas
Só pode conceber!... Em meu caminho
Ela se erguia sempre nos meus sonhos
Ela passava pensativa, meiga,
Como um gênio de Ossian! Nos meus versos
Seu doce nome ressoava sempre!
Debalde procurei riscar da mente
Essa imagem divina; parecia
Que o destino a ligava a minha vida!
Todas as taças de um viver sem gozo
Traguei descrido. De minh’alma as flores
No lodo mergulhei, e inda tão cedo
Perdi-me em profundos desvarios!
Fui no recinto em que circula o vício,
Ao clarão da candêa fumarenta.
Pendera negra mesa empalecido,
Gastando as noites no fervor do jogo!
Tonto de vinho, desvairado em febre,
Elevei minha taça transbordando
Entre blasfêmias e obscenos cantos!
E nos gritos da orgia, e no delírio
Uma voz sonorosa me acordava
Do longo pesadelo de minh’alma,
E eu soluçava me lembrando dela!
Coberto de tristezas e de saudades,
Quebrei a ausência, atravessei os mares
Vim à vida buscar ante seus olhos
Após tão longo exílio, ardendo em gozo,
O coração pulsando de alegria,
Aos lares dela dirigi meus passos,
Mas silêncio!... Um véu negro, impenetrável,
Cubra esse quadro que meus olhos viram,
Durma na sombra de um olvido eterno
Esse mistério fúnebre, banhado
De lágrimas de sangue! E tu, minh’alma,
E tu, pobre infeliz, manchada, fria,
Abafa no teu seio essas lembranças...
Nem um sonho sequer desse passado
Venha turbar seu pesadelo imenso!
Rio Claro, 1861.