ARQUÉTIPO
Ele era belo! Na espaçosa fronte
O dedo do Senhor gravado havia
O sigilo do gênio: em seu caminho
O hino da manhã soava ainda,
E os pássaros da selva gorjeando
Saudavam-lhe a passagem neste mundo.
Sim, era uma criança, e, no entanto,
Frieza de morte lhe coava n’alma!
O seu riso era triste como o inverno,
E dos olhos cansados nem um raio,
Nem um clarão, nem pálido lampejo
Da mocidade o fogo revelavam!
Era-lhe a vida uma comédia insípida,
Estúpida e sem graça; ele a passava
Com a fria indiferença do marujo
Que fuma o seu cachimbo reclinado
Na proa do navio olhando as vagas;
- Vivia por viver... Porque vivia.
Em nada acreditava, há muito tempo
Que a idéia de Deus soprara d’alma
Como das botas a poeira incomoda...
O evangelho era um livro de anedotas,
Beethoven torturava-lhe os ouvidos,
E a poesia lhe causava sono.
Muita donzela suspirou por ele,
Muita beleza lhe dormiu nos braços;
Mas frio como o gênio da descrença,
Após uma hora de gozar maldito
Saciado as deixou, como o conviva
A mesa do festim, farto e cansado.
Era mais caprichoso, mais bizarro
Do que um filho de Albion, mais vário
Que um profundo político: uma tarde,
Após haver jantado, recordou-se
Que ainda era solteiro! – Pelo Papa!
É preciso tentar, disse consigo.
Quatro dias depois tinha casado:
Escolhera uma noiva descuidoso,
Como um brinco chinês, um livro in-folio
Ao altar conduziu-a, distraído,
E as juras divinais do casamento
Repetiu bocejando ao sacerdote.
Como tudo na vida, o matrimônio
Bem cedo o aborreceu; após três meses
Disse adeus à mulher que pranteava,
E acendendo um cigarro, a passos lentos,
Dirigiu-se ao teatro, onde assistiu
A um drama de Feuillet, quase dormindo.
Por fim de contas, uma noite bela,
Depois de ter ceado entre dois padres,
Em casa da morena Cidalisa,
Pegou n’uma pistola e, entre as fumaças
Do saboroso havana, à eternidade
Foi ver se divertia-se um momento.
São Paulo, 1861.