EMPRÉSTIMO & MAIS
EMPRÉSTIMO & MAIS
William Lagos
EMPRÉSTIMO I (7 NOV 12)
Eu te empresto meu som e então espero,
pacientemente, que me venha o juro.
O meu empréstimo de som é sempre puro,
somente aguardo um eco teu, sincero.
O meu som eu te empresto e nele gero
a expectativa de um retorno obscuro,
que reverberará ou será duro
silêncio bem oposto ao quanto quero.
Quando te escrevo, meu som é inaudível,
só quando lido se torna cristalino,
pois não terei retorno, se não lês;
mas caso o leias, bem sei será incrível
o juro obtido no investimento fino
dessa minha voz inaudível que nem vês.
EMPRÉSTIMO II
Eu te empresto minha visão e espero ainda,
pacientemente, de teus olhos a abertura;
que brilhem nas pupilas, em doçura
e que minha vista em ti seja mais linda.
O meu empréstimo é um espelho que se brinda,
sempre em reflexo da imagem de ternura;
quero me ver em tua lágrima mais pura,
sentir minha íris em teu olhar bem-vinda...
Quando te olho direto na retina,
busco deixar ali a minha impressão,
gravada bem nas redes tuas neurais,
que em mim recordes teus sonhos de menina
e que me enxergues mais com o coração,
sem que haja cílios em cortinas naturais.
EMPRÉSTIMO III
Eu te empresto meu toque, bem de leve,
como carícia a te escorrer na pele;
que a ponta de meus dedos hoje vele
sobre teu corpo, nesta vida breve.
Eu peço o juro, que ainda não se atreve,
do teu carinho, no instante em que revele
como teu tato para mim te impele,
porque emprestei e o juro se me deve...
Não que tenha só agido por usura.
Na realidade, aguardo mansamente
pela menor ternura que me deres...
Que seja o toque sem intenção impura,
porém brotado da alma, inteiramente,
e só me pagues nesse dia em que puderes...
EMPRÉSTIMO IV
Eu te empresto meus versos, finalmente;
meu simples juro será a tua leitura.
Não há juros compostos nessa agrura;
apenas quero que os contemples ternamente.
Que sejam som e vista e minha textura,
que um cartório do astral me documente
a assinatura do amor mais excelente,
essa moeda sutil de minha postura...
Sem dúvida, emprestei, por meu carinho;
e nunca soube ser o juro indubitável,
muito menos que tornasse o principal,
porque percebo o coração ainda sozinho,
sem ter guardado promissória inabalável,
nem qualquer lucro acrescido no final...
TOURADA I (8 NOV 12)
Mais uma vez meu coração agito
ante teus olhos, como bandarilha,
para atiçar o touro da partilha,
que investe contra mim em terno grito.
Sei que ainda guarda o coração aflito
de tanta perda que do fado é filha;
por mais que eu reme, não alcanço a ilha
em que se encontra o teu amor bendito.
Só me deixaste entrever, de quando em quando
e a seguir te retraíste, em teu nevoeiro;
eu remo e remo, sem temer a bruma,
com toda a estâmina que a meus braços mando
e então me perco, por ter visto derradeiro
uma miragem para a qual meu bote ruma.
TOURADA II
Ouço cantar com violência o olé
e sei que o sangue já colore a areia;
os muleteiros, em sua obra feia,
já te sangraram até trair-te a fé;
Noutros confiaste e sua espada até
se te cravou na carne; e te arreceia
aproximar-te de mim, pois outra veia
posso ferir-te, ao chegar de ti ao pé...
Porém não sou toureiro e nunca o fui;
não é tua orelha que pretendo recortar,
para nas mãos de outra qualquer depositar;
bem ao contrário, tal ideia até me pui
o meu trajo de luzes; e, sem maldade,
de ti só espero o momento da verdade...
TOURADA III
Meu coração é o galardão vermelho
que agito para ti, em tal engodo;
se nessa arena pinga sangue a rodo,
é o sangue meu brilhante como espelho.
Não trago adaga e bem mais me assemelho
a um curador, nesse encarnado lodo;
teu coração eu miro de outro modo,
gasto minha vida para teu conselho...
Sei bem o espanto que causa à feminil
ser comparada a um touro com suas puas,
mas é que danço ao derredor de ti;
e nesse embate, demonstro ser viril,
sem qualquer medo dessas guampas nuas,
nem de outras dores que por ti sofri.
MALCOCHETE I (9 NOV 12)
Malcochete é uma vila em Portugal
que nunca visitei; e é bem provável
que meu destino a faça inalcançável,
na eterna ausência de seu gentil fanal...
São aleatórios meus títulos, afinal,
igual que aleatória é a incansável
imprecisão que o destino tão mutável
derrama sobre mim, em tom banal...
A cada vez que meus planos arquitete,
vem o fado a me sorrir, em seus melismas
e me impulsiona a cadência mais plagal...
E não importa se me queixe ou que me aquiete,
o meu porvir conserva as próprias cismas,
minhas rotas todas embaralhando no final...
MALCOCHETE II
Por que então mencionar a Malcochete,
um nome até nos mapas obscuro,
que apenas entrevi, em sonho escuro,
desses de sesta, que meu sonho inquiete...
Alguma imagem do antanho se intromete,
a rebrilhar, pirilampo do inseguro
ou fogo-fátuo de fulgor impuro,
a esfarelar minhas ânsias em confete...
Muitas portas já conservam a minha pele,
restos de unhas, talvez, restos de sangue;
bati frequente, porém nunca me atendeu
esse porteiro que na antecâmara me vele,
que certamente me ouviu, porém se entangue,
adormecido à escrivaninha que escolheu...
MALCOCHETE III
Meu livre-arbítrio foi, por certo, um imprudente,
sempre a tomar decisões mal informadas;
quiçá descenda das amaldiçoadas,
malevolentes escolhas de outra mente...?
Sei que o destino se constrói frequente:
cada momento apresenta encruzilhadas;
resoluções depois acompanhadas
da consequência que a essa senda é inerente.
Voltar atrás nunca se pode, realmente:
quando se volta, já são outras escolhas,
qual nos meneios e lances do xadrez...
Mas de fato, a ninguém culpo inteiramente,
que fui eu mesmo a virar todas as folhas
de cada página que meu destino fez...
MALCOCHETE IV
Contudo, algumas vezes me pergunto
se meu destino, mesmo assim, me protegeu
e quando um passo à frente me escolheu,
meu próprio plano tornando assim defunto,
seu câmbio feito por qualquer outro adjunto,
alguma bênção disfarçada concedeu:
nenhum acidente até o presente sucedeu,
minha mente é clara, qualquer que seja o assunto.
Tive minhas dores, porém jamais fraturas,
e francamente, necessidades eu não passo;
já tive amor bastante em meu regaço
e estas lavras que redijo ainda são puras...
Talvez o fado em minha vida se intromete
para que eu veja, ainda algum dia, Malcochete...
MALCOCHETE V
Foi Malcochete aldeia só de pescadores,
misturados, certamente, a pecadores...
Quiçá por lá ainda eu compre quinta,
antes que em Freixo-de-Espada-à-Cinta...
Não sei se o fado me leva aos algarvinos,
para com eles mesclar os meus destinos;
ou me transporta à fronteira com a Espanha:
lutas travadas com tremenda sanha...
Não sei, de fato, o que a vida me reserva:
se encontro à frente doença, et caterva...
Até o presente, sempre tive boa saúde...
Mas essa isenção a mente não me ilude...
Quem sabe as Parcas já me têm o dia marcado
e em Malcochete encontrarei o fim do fado...
MALCOCHETE VI
Não sei se pesco ou peco, finalmente:
talvez devera ter pecado muito mais...
Por mais labute o pescador, jamais,
com seu trabalho enriquece facilmente...
Melhor lucra quem o peixe, espertamente,
pondo de lado as preocupações morais,
ganha dos outros, por motivos comerciais:
todos aceitam, sem reclamar frequente...
E em Malcochete, vou buscar sardinha...
Talvez arenque, perca ou bacalhau
(que não se encontra mais em Portugal...)
ou então meu barco afunda e se avizinha
meu tão adiado enfrentamento mau,
na esquina aquática com sabor de sal...
rimas secas I (10 nov 12)
são secos versos esses meus de hoje
pobres de linhas e semiapodrecidos
vazios de rimas, textos delinquidos
talvez motivos para que me enoje
por mais que em massa métrica me espoje
meus sentimentos estão adormecidos
dormem em tumbas meus sonhos esquecidos
sem elegia que nas lápides se aloje
são versos curtos esses que hoje faço
fugida a inspiração, versos capengas
(descadeirados como o meu amor)
que em mim percebo a falta de um pedaço
na sílaba insutil das rimas rengas
de um coração que bate sem calor
rimas secas II
a mente oscila conforme seus hormônios
nem sempre tem razão meu bom-humor
vejo ironia permeio a qualquer dor
sou alvo fácil de muitos feromônios
alguns me afetam diretamente os gônios
outros me causam alguns laivos de pudor
desodorantes me provocam desamor
vejo em tatuagens as artes dos demônios
não obstante, nunca sou o responsável
pelas palavras que a fila acotovelam
elas me surgem por qualquer motivo
sou até à falta de motivo vulnerável
em que minhas propensões silentes gelam
sem encontrar de fato um lenitivo
rimas secas III
destarte se hoje os versos se ressecam
e quando os toco se esfarelam em punhados
são de suor e sangue acompanhados
embora em lágrimas mui raramente pecam
alguma vez até parece que defecam
meus dedos a cantar espaventados
do que por eles escorre, dominados
pelos inúteis sonhos que hoje secam
porém coloco açúcar na farinha
uns ovos bato e adiciono sal
da salgadura de meu sangue natural
cheiro de ferro na lágrima sozinha
que no olhar não encontra mais refúgio
mas salga versos em tal subterfúgio
COMO EM TRÂNSITO NA TERRA I (11 nov 12)
Na quintessência estética da mente
os sentimentos são depressa destilados
e traduzidos em versos colegiados,
magistratura gelada e indiferente;
e vai saindo em sonhos refinados
cada quimera de poder esmaecente,
esfarrapada em mortalha subjacente,
no estampido de rebanhos apressados;
que há muito dominei os pesadelos,
todos se encontram em celas aferroados,
refletidos pelas grades do bisonho,
travestidos quiçá em cantos belos,
seus maus odores apenas disfarçados
na quintessência macular do sonho.
COMO EM TRÂNSITO NA TERRA II
E assim passa lentamente toda a espera,
de braços dados o temor e a esperança,
até o ponto em que a memória alcança,
irmãos gêmeos, afinal, que a mente gera,
ambos magros remadores da galera,
indispensáveis, quando a brisa mansa
as velas pandas deixa e sem bonança
ou se a borrasca nos investe como fera,
acorrentados com os demais galés,
os ódios, as invejas e a vaidade,
a pureza, o destemor e a caridade,
inseparáveis das extintas fés,
acoimados em similar identidade,
sob o cruel chibatear da realidade.
COMO EM TRÂNSITO NA TERRA III
O feitor que os chicoteia é minha memória
e o meu porvir é quem bate o seu tambor,
no ritmo inexorável do pendor
que em seus remos os força à luta inglória;
e contudo, as inflexões de bruta escória
vão lado a lado com as intenções de amor:
depende o barco de cada remador,
cada remada não mais que provisória,
pois se falhasse tão só uma emoção
os demais remos quebrariam, um a um,
e é cada dor que a nau lança e alavanca,
nesse bater constritor do coração,
que não pode prosseguir sem ter algum
soluço triste que a vida nos arranca.
COMO EM TRÂNSITO NA TERRA IV
Cada remada um esforço transitório,
tornado inútil se o seguinte não vier,
que a barca irá aonde o mar requer,
todo o medo e esperança em perfunctório
esforço vago do ideal mais merencório;
só a esperança não poderá permanecer
sem o irmão medo em seu estranho parecer,
ante o ritmo cardíaco constritório,
pois que seria da esperança, sem o medo
e que seria do medo, se a esperança
escorresse inabilmente desses remos?
e com o apoio dos sentimentos mais pequenos
à terra envidam; e, na partilha do segredo:
pois todos remam e é assim que a nau avança.
O GALO DA DISCÓRDIA I (12/11/12)
a vida é um dia, no surgir da Aurora,
que se descampa, até que o sol se Apaga;
dúzia de horas de luz a vida Afaga,
depois a deixa na longa e escura Hora.
a vida é uma lembrança desse Outrora,
que se imagina como ingênua Saga:
cada alegria alguma dor Estraga,
cada tristeza se engalana e vai Embora.
passam assim as longas horas do Verão
e as curtas horas do hibernal Aponte
e lá do alto o céu nos olha, em seu Muxoxo,
indiferente à nossa Brotação,
enquanto o sol se esconde no Horizonte,
nesse laranja intenso feito Roxo.
O GALO DA DISCÓRDIA II
falam da aurora qual deusa Rosada,
mas muita vez se reveste de Escarlate;
dizem que o roxo é que faz seu Arremate,
mas muita vez é crisálida Dourada.
canto os arco-íris de cadência Variegada,
sete ilusões com que a mente te Arrebate,
com seus cambiantes iludindo cada Vate:
são todos brancos, quando a luz é Examinada.
fazem-se negros quando a aurora Morre,
extasiada de amor pelo Crepúsculo,
e a vida lentamente se Acinzenta,
enquanto o próprio sangue que te Escorre,
nesse brancor e encarnado do Corpúsculo,
se torna preto quando a luz se Ausenta.
O GALO DA DISCÓRDIA III
é o galo que apresenta muitas Cores,
vermelha a crista e a cauda Empenachada,
verde e laranja, vermelha e Acastanhada
sua cobertura de viris Ardores.
contudo são da galinha esses Pendores
de chocar e cuidar de sua Ninhada.
cantam os galos, em aviso da Chegada,
com péssima intenção, dos Predadores.
estes são logo por raposas Sufocados,
por mais cheias de pedras suas Moelas,
e de seus mantos facilmente Depenados.
mas sem galinhas, onde estará a Gemada?
embora sejam, no geral, bem mais Singelas,
sem ter dos galos aventais Desatinados...
O GALO DA DISCÓRDIA IV
e o mesmo ocorre entre nós, a nosso Modo:
alguns reclamam toda a fama e Glória,
enquanto outros, sem proclamar Vitória,
o alimento produzem, com Denodo.
e embora cantem com sua voz Peremptória,
locupletando-se com dinheiro a Rodo,
mantêm os pés fincados sobre o Lodo,
apenas arco-íris mostrando em sua Pletória.
quantos existem por aí que fazem Tanto
e nunca são apreciados por Ninguém,
porque não trazem cores em suas Penas!
falhando esses vaidosos no Entretanto,
enquanto humildes o seu cantar Sustêm,
embora montem e iluminem tantas Cenas!
BALADA DE CARNAVAL I (12/11/12)
Nunca tive propensão ao Carnaval;
só no teatro é que me fantasiei...
Quando criança, é claro que brinquei
coisas de roda, como era natural.
Mas o que chamam de brinquedo, no total
carnavalesco episódio, eu não dancei;
só algum ritmo folclórico pratiquei,
mas com talento medíocre, afinal...
Foi bem pendor sempre o intelectual
e minha formação bem protestante:
nada se faz, sem ter um objetivo.
E o Carnaval é um pálido ritual,
recordação daquela dança triunfante
a que, afinal, a Peste Negra deu motivo...
BALADA DE CARNAVAL II
Até gostava do Carnaval de rua,
mas nunca estive em baile à fantasia
e, francamente, ainda não sei o que perdia:
tanto suor a escorrer da pele nua...
Não me afeta nostalgia que me imbua;
coisas melhores para mim fazia:
pois para mim o Carnaval só parecia
uma ginástica sem ordem, pura e crua.
Meu exercício sempre foi o caminhar
e para haver desenvolvimento muscular,
eu jamais frequentei academia.
Usei machado e brandi a picareta,
para o trabalho braçal não fiz careta,
pois nele um objetivo eu sempre via.
BALADA DE CARNAVAL III
Quem sabe, nisso errei. Minha formação,
tendo o trabalho como claro objetivo,
não via razão para pulos sem motivo,
ou ajuntamentos de grande multidão.
Talvez assim perdesse a sensação
do tribalismo, em seu ritual votivo,
dos festivais romanos, um redivivo
desgaste físico de pura exaltação.
Mas Carnaval é o “adeus à carne” da quaresma.
Como podia nele achar significado,
se a carne recusava já em criança...?
E o próprio sexo era então um abantesma,
cada folião nos bailes bem vigiado,
sem de consumações grande esperança...
BALADA DE CARNAVAL IV
Mas os blocos e os batuques me agradavam:
subia o som direto à atmosfera...
Já nos salões o estrondo reverbera
e meus ouvidos, ainda de longe, tilintavam...
Mesmo no rádio, não se acostumavam
à percussão, para mim a besta-fera
que uma inaudível melodia gera:
mal entendia as palavras que cantavam...
E desde sempre favoreci o erudito:
muito escutei os discos de acetato,
pais do vinil, que trouxe som mais plano.
E dos órgãos apreciava o som aflito,
posto de lado depois, um triste fato;
e ainda escutava minha mãe tocar piano...
BALADA DE CARNAVAL V
Ela falava com reprovação
até mesmo das trovas e modinhas
ou procissões, com suas ladainhas,
só dando ao “clássico” a sua aprovação.
Mesmo a valsa tinha certa rejeição,
que só tocava, às vezes, em festinhas;
sem dar valor a chotes ou a sambinhas;
era instrumento de bêbado o violão...
Bem mais eclético é meu gosto musical.
O folclore sempre me agradou
(talvez Caruso até ajudasse nesse ideal)
se a percussão fosse apenas moderada...
Como, então, apreciaria o Carnaval,
cacofonia de intensa batucada...?
BALADA DE CARNAVAL VI
Não é de admirar que me isolavam,
pois nem sequer apreciava futebol...
Eram estádios descobertos, sob o sol
e os verões já nesse tempo me espantavam...
As baladas, nesse tempo, só indicavam
longas poesias sobre heroico rol,
ou elegias ante a morte ou o arrebol,
belos poemas que a mente me encantavam...
Hoje mudaram o sentido da balada,
transformada em sassarico e Carnaval...
Onde se encontra a sua antiga nostalgia...?
Tornou-se apenas em balanço, acompanhada
pelo desodorante... Um vendaval
que em mim não inspira um só verso de poesia...