SOMBRAS ESTELARES & MAIS

SOMBRAS ESTELARES I (31 OUT 12)

Os homens falam dessa estrela-guia

que nos orienta a vida até a morte;

que nos protege, quiçá, e traz a sorte

ou um laivo de amargura e nostalgia...

E todo aquele que em tal estrela cria

a ela deixava suas decisões de porte,

tomando a boa estrela por consorte,

como uma deusa, afinal, que nos vigia.

É claro que só vemos a olho nu,

se a vista é aguda, não mais que seis ou sete,

ou talvez oito mil estrelas, em confete;

ou os cometas em seu raríssimo rebu-

liço, a nos passar caudas à cara...

Com qual estrela o teu destino se compara?

SOMBRAS ESTELARES II

Oito mil anos atrás, foram os sumérios

a medir, com cuidado e com compasso,

esse caminho que traça ao Sol o passo

bem controlado, em siderais eremitérios...

E já cantavam, em adufes e saltérios

sobre as constelações, cujo regaço

acalentava o sol no amplo espaço,

traçando sua influência em mapas sérios...

Oito mil anos depois, mudou o zodíaco,

o tal caminho do Sol sobre animais,

quais aos antigos sugeriam constelações;

e ao ler horóscopos, meu humor satírico

só imagina que os fogos imortais,

já churrasquearam meia dúzia de ilusões...

SOMBRAS ESTELARES III

Só conservo para mim uma certeza:

que existem livre-arbítrio e igual destino;

mas não posso acreditar no desatino

de que as estrelas determinem, com dobreza,

o que me há de suceder, bem ou vileza,

nesse planger galáctico de um sino

que me estigmatizou desde menino

para viver na miséria ou na riqueza...

Ainda acredito ser do barco o capitão

que percorre essas sombras estelares

e o rumo eu tomo por minha própria decisão.

Mas após ter escolhido, mal ou bem,

qual meu caminho pelas trilhas milenares,

não posso delas me desviar também.

CRO-MAGNONS I (1º NOV 12)

Sem a morte, não surgiria a religião

e nem sequer, talvez, canibalismo,

Iniciado, quiçá, por ritualismo,

para manter uma interna comunhão

com aqueles que partiram; e que são

incorporados, nesse ato sem egoísmo,

aos descendentes, em singular tropismo,

a partilhar do viver dos que ainda estão.

Contudo, os ancestrais dos europeus

foram os primeiros a dispor em fila,

dos que partiam, suas antigas possessões,

ao redor dos que foram amados seus

e pelos moldes vermelhos dessa argila

deixando de seus corpos impressões.

CRO-MAGNONS II

São essas provas de rituais arcanos

que nos indicam serem religiosos;

morriam, em geral, ainda formosos,

que a vida natural para os humanos

sempre lhes trouxe inimigos soberanos,

dentes e garras sempre perigosos;

pouco a pouco, esses seres tenebrosos

foram extintos, no decorrer dos anos;

que houve leões e tigres pela Europa:

dentes-de-sabre a alguns agora chamam,

mais os temíveis ursos das cavernas,

que, hoje em dia, só em museus se topa...

heróis sem canto, que do passado bramam,

os exilaram às vastidões externas...

CRO-MAGNONS III

Eram também das tempestades réus,

dos vulcões e relâmpagos ardentes,

dos terremotos, então bem mais frequentes,

inundações que desciam desde os céus...

Como tais homens poderiam ser incréus,

Vivendo sem confortos permanentes?

Poucas agruras passam os descrentes,

que só da morte hoje sofrem os arpéus...

E assim se queixam, de barriga cheia,

por algum ente amado que perderam,

após viverem um milenar de meses...

Se morassem, porém, por sobre a areia,

dariam graças pelos peixes que comeram:

não há ateus permeio aos pescadores...

CRO-MAGNONS IV

Contudo a morte ainda nos afeta:

cada um de nós irá cruzar as suas muralhas;

não só na guerra se travam as batalhas...

Quantos perecem em uma estrada reta?

Antigamente, se quarenta se completa,

já eram vidas de compridas calhas,

que por acaso não encontraram falhas

que lhes cortassem a bênção tão dileta...

Hoje se vive oitenta e até cem anos,

nossos ambientes propícios aos humanos,

quando partilham da cultura das cidades...

É até possível que as novas gerações

séculos gozem em suas peregrinações,

na oposição das transitoriedades...

CRO-MAGNONS V

Mas ainda lembro quão diversa era a cultura,

vivendo perto assim do cemitério...

Passava a gente empós o refrigério

de cuidar da família a sepultura...

Hoje me causa sensação bem dura

a minguada procissão ao eremitério...

Qual será a causa desse despautério?

Por que dos mortos o povo não mais cura?

Pode até ser que seguiram outra rua...

Há capelas laterais e outro portão

na rua de trás, mas ouço e não escuto

o barulho dos motores, em arrua-

ça, tal qual fazem em eleição...

Por que tornou-se tão minguado o luto?

CRO-MAGNONS VI

Pois certamente o ateísmo não domina;

nunca vi tantas novas religiões;

ainda os católicos percorrem procissões

e os evangélicos confiam a Deus sua sina...

Será que ao medo dos mortos não se inclina

o coração, em suas mil superstições?

Eu, pessoalmente, prefiro as cremações

do que essa alta prateleira que se empina,

restos mortais ostentando, em seus caixões...

Mas isso é para mim, que a cinza venha

ser espalhada, sem grandes compunções...

Quem sabe a alma até suba mais depressa

para esses páramos em que Deus a tenha,

como em uníssono asseveram as religiões...

DIA DOS MORTOS I (2 NOV 12)

Penso de novo em minha própria cremação

como uma bênção que espero me aconteça;

também minha esposa me fez fazer promessa:

não quer velório ou qualquer encomendação.

Deixo meus mortos, por enquanto, aonde estão:

nesses sacos de plástico não se engessa

a ossamenta; porém já poeira espessa

se acumulou, há bem mais que uma estação.

Por que então a tais massas cinéreas

não transformar no véu de sua neblina?

Meu coração para tal fim sempre se inclina,

que o fogo me consuma, sem mais lérias,

pois sobre um tal destino se me espelha

macia a chama como lã de ovelha...

DIA DOS MORTOS II

Antigamente, na terra colocados,

bem mais depressa eram os corpos consumidos,

desmanchados mais veloz do que os pecados

que porventura tivessem cometidos...

Só lápides ou cruzes tais perdidos

restos mortais assinalavam enterrados;

permaneciam nos caixões apodrecidos

apenas alguns ossos desgastados...

Era mais limpo assim... Os vermes vinham

e à Natureza devolviam os elementos...

Mas surge então esse costume de gavetas,

arrombadas pelas joias que continham,

pelos próprios coveiros avarentos,

a contrariar as avarezas mais secretas...

DIA DOS MORTOS III

Pois é tolice o corpo conservar

pela esperança da ressurreição:

que diferença isto fará à geração

já pelos séculos forçada a desmanchar?

Nem sei de onde surgiu o imaginar

de que as almas necessitassem proteção,

nessas gavetas imundas, onde estão

trajos antigos no esqueleto a ressecar...

Quem pensa assim, não leu as Escrituras:

lá está bem claro, na Epístola aos Romanos,

que se semeia o corpo material,

mas na ressurreição, as almas puras

que habitavam os corpos dos humanos

só ressuscitam em corpo espiritual!...

CHEIRO DE SAUDADE I (4 NOV 12)

Nosso olfato é o mais antigo dos sentidos,

aquele que desperta mais memórias;

qualquer cheiro nos revela transitórias

lembranças de momentos longe havidos.

Cheiro de sóis dos tempos decorridos,

com suas visões laterais e perfunctórias,

com carícias mal e mal perceptórias,

tudo esquecido nos anos transcorridos.

E de repente, nos atinge aquele olor

e nos renova uma passada expectância,

que já se havia descurado totalmente

e nos conserva imersos no calor

daquela tarde comum de nossa infância,

numa certeza quase impertinente...

CHEIRO DE SAUDADE II

A chuva nos afeta, especialmente,

pois nosso antanho se evola como poeira,

aquerenciado em nuvem passageira,

ao nunca mais correndo facilmente.

Fica a lembrança no ar superjacente

e nos contempla lá do alto em sua brejeira

memória triste, indiferente ou alvissareira,

tudo mostrando em palpitar paciente.

Nossas vidas registradas nas alturas,

em sabor quântico que a velha luz inflete

a nossa herança às gerações futuras.

E de repente, qual jato de confete,

num entrevero com outras gotas puras,

se derrete sobre nós, em espermacete...

CHEIRO DE SAUDADE III

Naquele odor imponente de umidade

desce a lembrança, em cada tom e grão,

e relembramos amores que lá vão,

sabores esquecidos de irmandade...

e os mortos brotam, inteiros, sem maldade,

suas faces vívidas, completa sua visão,

o som das vozes em clara percepção,

cheiro de beijos no vento da saudade...

E aquelas fortes sensações primeiras

o ventre assaltam assim, de sopetão,

o coração a saltar por um momento,

enquanto somem algumas derradeiras,

diluídas como bolhas de sabão,

entre as películas do fino esquecimento...

CHEIRO DE SAUDADE IV

Diz a ciência de cunho neurológico

que se divide em alguns compartimentos

a rede física de nossos pensamentos:

num a memória, em outro o fato lógico.

Segundo afirmam, o setor olfatológico

se encontra ao lado da memória dos momentos

que perpassamos, na esteira dos eventos,

proximidade em vasto efeito biológico.

Portanto o cheiro nos recorda a alcateia

dos primitivos odores familiares,

em momentos mais marcantes da experiência.

E quando quero recordar essa assembleia

das remembranças que de ti são ancilares,

aguardo o cheiro da chuva, com paciência...

INSISTÊNCIA I (5 NOV 12)

Cabe aos homens, perante a sociedade,

procurar e insistir pela conquista;

partir do lar e seguir empós a pista

de quem lhes despertar mais ansiedade.

Cabe à mulher, em tal desigualdade,

esperar timidamente que ele insista;

que mostre as penas e lhe enfune a crista,

enquanto aguarda em aparente sobriedade.

Mas tanta vez invertem-se os papéis!

O pobre homem, quieto no seu canto,

Sente um perfume que vem-no perturbar...

O cíngulo a desatar dos seus buréis,

nessa antífona composta em contracanto,

que seu desejo sabe despertar...

INSISTÊNCIA II

Hoje em dia, a mulher não mais espera;

e na verdade, nunca fora bem real

essa espera pretendida natural:

armava a jovem seu bote como fera...

Fazia-se bela quando o anseio gera,

dentre a intensa competição social,

em fantasia de prenda ou carnaval,

sem restringir-se a uma vigília mera...

Assim afirmam as mulheres sentir frio

bem mais que os homens, mas disso eu duvido:

vestem tão poucas roupas pelas ruas...

E põem ao invés de calção, um simples fio

dental, como puseram o apelido,

cheias de frio e andando quase nuas...

INSISTÊNCIA III

Quando são belas, eu até concordo:

“o que é bonito é para se mostrar...”

Só não me agrada é que venham alegar

que os homens chegam por seu desacordo.

Só vão tentar subir da nave a bordo

vendo a prancha na doca se apoiar...

Pois não pretendam então se inocentar,

que a velha dança requer algum acordo...

Na verdade, a menina, ingênua embora,

já sonha com seu príncipe encantado

e no seu colo traz de embalo a bonequinha...

Quando o menino, nessa mesma hora,

brinca de policial, faz-se um soldado

e até jogando futebol trava guerrinha...

INSISTÊNCIA IV

E são as mães e as titias que mais buscam

atrair esses que julgam bom partido...

O rapazinho vê-se logo perseguido

por festinhas e jantares que o ofuscam...

Mas quando toma a iniciativa, muscam,

fingindo nada ter sido pretendido...

tem de insistir, até ser atendido

e bem preso na armadilha que rebuscam...

Tudo contado, é bem melhor essa abertura

em que a insistência se revela claramente,

sem os babados da antiga hipocrisia.

Mostrado o sexo na intenção mais pura,

pois tudo muda, mas não muda, certamente,

o alvo final a que a raça assim nos guia...

FUSÃO I (8/7/2006)

meu desejo é que todos os teus dias

azuis se tornem, não feitos de tristeza,

mas desse azul perfeito da beleza

que marcou a amplidão, quando sentias

por mim um meigo amor e percebias

que teu destino é meu; plena certeza

que meu destino é teu, nessa nobreza

compartilhada pelas nostalgias...

do que não ter se pode, mas querendo

que tal amor, de dimensão profunda,

um dia se consuma, feito sangue e sol.

que tal amor, por que já estou sofrendo,

me afogue a alma, como a tua inunda

e mescle as duas, igual que num crisol.

FUSÃO II (6 NOV 12)

meu desejo é que retomes alegrias,

na revoada antiga da ilusão;

que exista permanência e não paixão,

que enamorados, porém, sejam teus dias.

meu desejo é que o véu das elegias

não seja apenas uma chuva de verão,

mas neblina pervadente de emoção,

branca e suave como névoas frias.

não de calor de espanto suarento,

mas calidez emanando da lareira,

que o gelo quebra sem partir-te a calma;

nesse vapor invisível do momento

em que teu beijo é límpida videira,

embriagando de mosto nossa alma.

FUSÃO III

o meu desejo é mais que o açodamento;

que se cumpra em tom diário e bem seguro;

seja o desejo físico mais puro,

ultrapassando qualquer consumamento;

que seja o beijo que nos lábios experimento

muito mais do que qualquer impulso obscuro

que se consuma em latejar perjuro,

já olhando em volta, avaliando outro momento;

que seja o amor essa fusão completa

que nos conduz enquanto a vida dura,

sem ser cortada pela sepultura,

mas se projete, em vastidão dileta,

igual que o bronze, que só se torna forte

pelo cobre e pelo estanho que comporte.