ESCULTURAS DE ÁGUA 1-12

ESCULTURAS DE ÁGUA I (2/6/2010)

Entre meus dedos, a água se acumula,

límpida e clara, numa onda pura:

na palma de minha mão a espuma dura

e se congrega numa espera nula...

Só eu sei os segredos dessa bula,

que a fluidez da água, sagaz, cura:

crio um cristal, que o líquido não fura,

para alvo cintilante de minha gula...

Não me contento em assim reter o mar,

como um globo de luz, inelutável...

Bem ao contrário, sei bem como moldar

essas moléculas de feitio maleável

e as manipulo, qual massa a modelar,

igual que ao sonho mais imponderável...

ESCULTURAS DE ÁGUA II

Nesses moldes de água refletidos

se encontram toda fênix e quimera;

penas de fogo eu toco e quem me dera!

fossem de fato esses monstros esquecidos...

Meus dedos nessa massa entretecidos

esculpem cada imagem, cada fera

tecendo a água qual se molda a cera

ou brande a argila dos barros percutidos.

Porque essa água que prendo entre meus dedos

e que a ponta da unha interpenetra,

também me envolve, com igual desvelo.

E se ergo a quente estátua dos segredos,

torno a tensão superficial em pedra,

mas também ela me transforma no seu gelo!

ESCULTURAS DE ÁGUA III

A minha amante tem olhos castanhos,

azuis, cinza e esmeralda e seus cabelos

são negros, louros ou ruivos em desvelos,

a reluzirem em seu fulgor, estranhos...

A minha amante tem sonhos tamanhos

como são frios os pesadelos belos;

a castelã já a encontrei de mil castelos,

também pastora de cento e um rebanhos.

A minha amante é pequena, média e alta,

é moça e velha e está na meia-idade,

é magra e gorda e tem corpo normal.

A minha amante é branca e negra e esmalta

os patamares de minha mediocridade,

quando em meus braços torna-se imortal.

ESCULTURAS DE ÁGUA IV

A minha amante é uma escultura d’água,

que amanho entre meus dedos, em carícia;

querer seja só minha é estultícia:

depois de pronta a lanço para a mágoa.

Eu a construo nas dimensões da frágua,

permanece entre minhas palmas em resquícia,

sua voz me gorgoleja em sua sevícia:

é incolor, afinal, qual toda a água.

Está na fonte do meu pensamento,

em que a moldo no pendor do bem dileto;

guardo minha amada na palma de minha mão,

até o momento de seu passamento,

quando se esgota todo o meu afeto

e deixo ao mar que a leve de roldão.

ESCULTURAS DE ÁGUA V

A minha amada é escultura nua:

percorro cada fímbria de sua pele,

colar de espuma com que assim me impele,

nesse ritual celebrado à luz da Lua.

A minha amada traz o som que estua,

nessa maré quebrada que então vele

sobre meu sono; porém basta que sele

as pálpebras, que já foge para a rua.

Como filetes, escorre pela porta

e se concentra em poça na calçada,

na vã esperança de não ser pisada...

Porque já o foi, coitada! Fica torta

e ao respingar, se vê despedaçada

nesses borrifos que todo salto corta.

ESCULTURAS DE ÁGUA VI

Os restos da escultura liquefeita

que sobraram dos calçados dos passantes,

se reuniram numa poça, como dantes

e então se ergueram para a fenda estreita,

para os degraus subir, numa desfeita

às ânsias libertárias delirantes

e a estátua volta à casa, em humilhante

translúcida noção de ser aceita.

E assim a recebi. As mãos já secas

a ergueram das lajotas, com carinho,

e a aconchegaram bem junto do peito,

para depois a colocarem sobre as tecas

do tampo de minha mesa, antigo ninho,

para esculpi-la de novo, sem defeito.

ESCULTURAS DE ÁGUA VII

Mas minha amante de aquática escultura

era promíscua pela liberdade;

quis ser do mundo ser, em sua vaidade

que mais louvassem sua beleza pura.

E como o vício do orgulho mais perdura,

até o banheiro foi, em falsidade,

pedindo um pouco de privacidade,

para avaliar a perfeição da cura...

Debruçou-se, solerte, sobre a pia,

e se lançou, em silêncio, pelo ralo,

com cuidado para não gorgolejar...

E a vi despida, na ambição vazia,

descendo pelos canos, em regalo,

na ânsia vã de o mundo dominar...

ESCULTURAS DE ÁGUA VIII

E novamente, só encontrou declínio

a minha pobre amada envaidecida:

como água pura desceu, foi corrompida

pelas águas do esgoto no domínio...

Foi conspurcada em puro lenocínio,

foi levada pelo fluxo em corrida,

de cambulhada com toda a água servida,

até encontrar um remanso como escrínio.

Reuniu-se então, subiu pelas paredes

e retornou pelo teto, em sacrifício,

até chegar ao ponto de partida...

Esgueirou-se por condutos que nem medes,

até alcançar do ralo o orifício...

eu já a aguardava de novo, em acolhida...

ESCULTURAS DE ÁGUA IX

Foi mais difícil desta vez... Eu tive

de puxá-la, aos fiapos, pelo cano

e recolher-lhe os restos, num insano

trabalho, o mais difícil em que estive.

Ainda que à imundície sempre esquive,

precisei purificá-la e muito dano

sofri em consequência desse engano

que levou minha amada a tal declive.

Lavei, filtrei e estendi, com prendedores,

quanto restava dessa estátua bela...

depois sequei, com chumaços de algodão;

levei-a à mesa e, no esforço dos amores,

eu restaurei de novo minha donzela,

pespontada com fios do coração...

ESCULTURAS DE ÁGUA X

“Ora, direis...” amar uma escultura

nem é estranho assim. Lá no passado,

Galateia inspirou igual loucura

a outro pobre coração atribulado...

E também Hoffmann, amante desvairado,

apaixonou-se por boneca pura,

só por ver seu coração despedaçado:

para os românticos a vida é muito dura...

Porém é compreensível. Uma imagem

de mármore, escultura permanente,

perdura muito mais que uma mulher...

Contudo, amor de água, em sua miragem,

é a mais perfeita loucura intransigente,

que só confessa quem mais loucura quer...

ESCULTURAS DE ÁGUA XI

E nem sequer se espera a lealdade

que mostraria uma estátua, em nossa casa,

forçada assim a total fidelidade,

por viver aprisionada firmemente...

Mas essa estátua de água complacente,

que por ralo ou por fenda qualquer vasa

que me forçou a esforço tão ingente,

para um contínuo restaurar de identidade,

fiel nunca me foi, nem poderia,

porque, afinal, uma escultura de água

sempre é fiel a todos e a ninguém,

sempre vivendo da seiva que escorria,

deslizando pelos olhos, feito mágoa,

por ser de todos, minha foi também...

ESCULTURAS DE ÁGUA XII

Contudo, a amo, pois nela a Natureza

intimamente e plena está contida;

eu não espero me seja concedida

a total bênção de toda a sua beleza.

Porém o amor da água, com certeza,

é o mesmo amor que temos pela vida;

não se trata de egoísmo ou da esquecida

ambição de lhe possuir toda a nobreza.

Mas é a água que se compõe em escultura,

modela a nuvem e no mar se espraia,

o caule murcho infla e torna forte...

E toda árvore e flor, como água pura,

fez amor com meus olhos, luz de Gaia,

que me dissolve no instante de minha morte.