Carmo do Rio Claro
No Carmo das águas claras
Passa tudo sem passar
Passa o boi passa a boiada
Passa o tempo mansamente
E o passsado anterior
Passa a rua que se inclina
No rumo daquela montanha
Vai pela estrada infinita
Dobra a esquina do amor
Passa a menina do doce
O doce desperdaçar
Passa a criança da escola
A praça a sente passar
Passa tudo, nada passa
Passa o boi, passa a boiada
Passa a vida que declina
Verbos no infinitivo
Conjugando a solidão
Ao dobrado som do sino
Para o meu triste destino
Gaiola de mambu fino
Passarinho na prisão
Pois quando eu era menino
Cacei muito passarinho
Mas hoje não caço mais
Perdido nos carrascasis
Escutava o seu chilreio
Mirava, acertava em cheio
Hoje não acerto mais
Eu era tão pequenino
Hoje sou ainda mais
Com as minhas esguias pernas
Subia as serranias
Para as lágrimas chorar
Lá no alto da tormenta
Onde toda a força venta
Onde tão longe se avista
E molhava os teus telhados
Os teus telhados de barros
Os teus telhados de musgo
Como chuva de lamento
Mas hoje não molho mais
As lágrimas purpurinas
Molham o peito da menina
Que morreu de apaixonar
Eu vim de lá das colinas
Eu sempre vivi por lá
Lá nada passa e se inclina
Na encosta da montanha
Tudo o que vem de cima
Tudo que vem do alto
No mistério do cobalto
Negro ouro reservado
A madre a oferecer
Meu reino por um cavalo
Meu reino por um santuário
Meu reino por um cordão
O reino ds altas terras
O reino da solitude
Reino das água claras
Caindo pelo grotão
Reino de contas douradas
Reino de grande verdor
As aves que aqui gorjeiam
Cantam o teu sofrimeto
Mas aqui, embora doa
O povo tem mais amor
Passa a serra e a tormenta
Passa tudo sem passsar
A cancela aberta passa
O queijo a me perguntar
O que passaste, menino?
Por aqui bem devagar
Passa tudo, passarada
Passa o boi, passa a boiada
Passa a lua equilibrada
No desespero da noite
Da madrugada o apelo
Na sombra do meu cabelo
Passo a passo o pesadelo
Pesando o meu sonhar
Passa a velha encarquilhada
Passa a lua a suspirar
A vida não deu em nada
Nada me meio a calhar
O beijo que tu levaste
Para uma vila no sul
Para a corrente do rio
Para o amor, amavio
O barro do joão-de-barro
O desenho de um canário
E o meu coração azul
As rédeas da liberdade
Antes que passe a tarde
Antes que cesse o vento
A vida nunca é de tarde
A vida nunca é solteira
A vida é uma brincadeira
Que se brinca sem brincar
Debaixo da laranjeira
Atrás do fogão a lenha
O muro de uma açucena
A queda da bungavilia
A florzinha do jasmim
A vida nunca é pequena
Pequeno é o seu altar.
Bom Deus, agradeço tudo
Rezo à noite e rezo mudo
Amém
Um rosário desfiado
Nos meus dedos de menino
Depositário das obras
Do sagrado coração
E do mistério da vida
Mistério da confissão
Amém, amém para sempre
Amém, que só sei rezar
O silêncio de uma reza
O silêncio de uma reza
No teu seio tão premente
Soluça o tempo escasso
Per omnia suculorum
Roda na roda o cilício
Pila no pilão o trigo
Meu coração apressado
O frango bica o meu peito
No pasto a coruja pia
Num sonho desentendido
E o menino em em riste
Jogando pedras na estrela
No açude prateado
O seu corpo mergulhado
Cobria a cabra no cio
E uma égua indolente
Na alcova da colina
Até que a noite acordasse
E se desprendesse o frio
Das alturas das montanhas
Debaixo de um céu de açoite
Numa neblina espessa
E o medo fazia a reza
Sair do pequeno ninho
Protegei Santa Maria!
Protegei que estou sozinho
Ave, Santa Maria
Ave perdida no céu
Ave sonora rainha
Ave perdoa o teu filho
Que não sabe perdoar
Que não sabe perdoar
Passa a reza proferida
No silêncio da cidade
Passa a,partida, o retormo
Passa a ausência do mar
E vai qualquerm momento
Adiando o meu castigo
Pois Deus se zangou comigo
Porque peqei, Santa Madre
Pequei contra a castidade
Pequei contra o não pecar
Pequei contra a minha sorte
Pequei contra o meu desígnio
Não soube resignar
Visível flor caróa
Pinheiro todos amarelo
A lavadeira a lavar
Lençol do meu branco pranto
A priminha não morreu
A priminha foi pra lá
E o teu pranto, pranto, pranto
Era branco como o manto
De nossa senhora da terra
De nossa senhora de tudo
Era branco o pranto teu
Era pranto como o meu
A Senhora Aparecida
Então foi que apareceu
Passa
Passa o fim
E o começo
A fúria passa
E o avesso
Do que passou
Passará
E passa o sol
Num declínio
Brihando
No seu caminho
Nem diz adeus
Ao partir
Passam
As palavras mais antigas
Os cantos religionais
Nos velórios as cantigas
Vão ficando para trás
Adeus
Nos campos gerais
Meu avô foi tropeiro
O meu pai adarilho
E eu pito o meu tabaco
Deitado na palha do milho
O meu amor foi primeiro
Teu amor ficou comigo
Diziam os velhos antigos
Amor sempre vai ficar
Amor que fica primeiro
Amor picando o meu peito
Amor verdadeiro amor
Amor beijando meus lábios
Um amor no cativeiro
E hoje diz o meu filho
No momento derradeiro
Indo das montanhas às abas
No meio de bois e cabras
O amor sempre foi demente
O crente de amor é tolo
Não se elogia um burro
Antes de um atoleiro
Amor nunca foi cigarro
Que se queima num braseiro
E aquelas cinzas que passam
São cinzas eternamente
Já dizia o meu avô
E minha avó repetia
Amor que fica soziho
É amor que parte primeiro
O meu avo tropeiro
Viajava o dia inteiro
Pelo caminho da pedra
Pois na pedra tudo fica
E passa o passo a seguir.
Passa a lua e madrugada
Passa o verso e a passarada
No passeio distraído
Passa, passa o boi passa a boiada
Passa a peneira rachada
Passa o momento de rir
Passa
Nos olhos do rio Sapucaí
Do cálice consagrado
Do escuro confessionário
O mapa do meu tesouro
Daquele menino que fui
Fui menino e não passei
Tanta fé no coração
E não me deixaram passar
Um menino que subia
A ladeira todo dia
E ia dar injeção
No velho tuberculoso
Deitado no seu colchão
De palha e desassego
Salve, salve Rainha
Mãe da misericórdia
Salve santa da tísica
Salve as almas do lugar ![
E na sombra do sembrante
Uma luz vinha luzir
Azulda lamparina
Bailada na minha sina
Deus há de perdoar
Viste a menina pálida
Que a baile não foi bailar ?
Chorou toda a madrugada
Desmaiada no no despaldar
Sepatinho de veludo
Mamãe me mandou ficar
Veio o moço capa e espada
Veio o ímpeto do dia
O travesseiro de pena
E toda a melancolia
Da janela sempre aberta
Passando a vida acolá
"O amor já é de si
Um grande arrependimento"
Debrucaçada no convento
Só não passa pensamento
Devaneio enfim não passa
E a chama que sempre arde
Ela reza e quer amar
Mas o amor não permite
Abnegado em tormento
O lamento não aceita
Não suporta a gelidez
De um vento sublunar
Receita de pão-de-ló
Forno de rosca caseira
Menina despedaçada
Bordando pano de prato
O pé fora do sapato
O tapete a desfiar
O tapete dos meus sonhos
Teus pés a cariciar
Passareim, tu passarás
Passaremos para trás
À sombra do tamarindo
Debaixo dos bananais
Passaremos, passareis
Cada um tem a sua vez
Passos livres no roça
Euclides na sua horta
Zé Luiz na piscininha
Compadre meu bom Francisco
Fumando do seu tabaco
Sorrindo flores de hibisco
Comadre sá Terezinha
Preparando com polvilho
Biscoito e café adoçado
No açucar do paraíso
O latido do cachorro
Túmulo da vovó morta
A porta do cemitério
Três desejos numa igreja
Esse destino-meu-Deus
A fazenda onde mamãe nasceu
Uma fazenda singela
Com lampião e cancela
Porta e janela azuis
Galinha ciscando o milho
Córrego pelo quintal
O matuto do Caraça
Que não cança de agachar
Agachado no caminho
De cada um passarinho
Como se ali fosse o mundo
Ali o mundo não é
Mas um pedaço a ficar
Mundo mundo vasto mundo
Sem rumo determinado
Campos campos campos tantos
Num recanto tão perdido
Que se pode reencontrar
Bel fazer e bel-amar
Um cárcere ou qualquer outro
A esquecer e desdenhar
Por um gole de aguardente
Pois dois goles de cachaça
O matuto do Caraça
Notando o sol a deitar
Sem pensar no que passou
A querer desconfiar
Abelha-de-poucas-flores
A sombra da gameleira
A meiguice do ficar
Passa o mestre sapateiro
A sovela e sovelar
Passa o José carpinteiro
Com vergonha de seu nome
Um serrote e um martelo
Passa o menino corrido
Esquecendo o bé-a-bá
E vai morrendo de fome
Arroz-doce, mugunzá
Passa o padre derradeiro
Para os prazeres provar
Passa a velha rezadeira
Murmurando as verpertinas
A viúva deserdada
A adúltera cristã
Passa a horda dos arcanjos
E a legião dos soldados
Passa a louca desvairada
O vadio embriagado
Passa o judeu errante
O abafador a matar
O protestante a matar
O protestante a reler
Palavras em livro preto
Promessa em turmalina
Na névoa desta manhã
Mentiras se enredando
Pelas frestas da iliada
Passa uma sonhadora
Com suas hostes pagãs
Passa o teatro do circo
Passa aquela prostituta
De estrelas embriagas
O catireiro a somar
Quando tudo é bom negócio
Por atacado ou varejo
O boticário a pingar
O solteiro apaixonado
Caminhoneiro perdido
Engenheiro a calcular
O passarinho pousado
O cachorro no farejo
O varredor a varrer
O mendigo a mendigar
Os sacos de cereais
Os secos e os afogados
Alho, cebola, fogo
As nuvens passam no céu
A chuva a delimitar
O tempo fértil da terra
E o lavrador lavrando
A vida no seu lugar
A vida no seu lugar
O padeiro perdoado
Por ter feito o nosso pão
O cego que ouve o sapo
Passa a mulher carpindo
A morte, último inverno
A sonâmbula que voa
A invejosa em seu melindre
O cabrito a saltirar
A mãe que nos desenreda
As irmãs maledicentes
A maldizer com três pragas
O homem que quer três homens
Os rapazes catamitos
Na sua cama a gozar
O estrume do cavalo
O esterco da galinha
A água tão cristalina
A vida no seu lugar
Na igreja e na cozinha
Na panela a fumegar
Mexendo em tachos de cobre
Os doces de uma rainha
Morando em minha cintura
Nossa Senhora de Fátima
Nossa senhora da lágrima
Nossa senhora da cura
Nossa senhora do mel
Nossa senhora da pátina
Nossa senhora do esmero
Nossa senhora cristal
Minha senhoro, socorro
Quase morro
Passa a caixa da ameixa
Fica a resina do gosto
Que não foi mentira, não
Resta a colheira das flores
Que o menino bom servia
Num copinho de aguardente
Discreto como a semente
Antes do seu desflorir
Num albergue de tilápias
Casebre de buriti
A tesourinha no fio
Desempenhava acrobacias
Vida, vida bem pretinha
Tua vida, tão sozinha
Sozinho num gabinete
Num banquete de palavras
A silhueta do sonho
Numa casa violeta
Escrevendo num caderno
Versos caídos do céu
Na mais turva tempestadee
As perguntas sem respostas
Num estranho coliseu
De lágrimas e de cristal
A lágrima passa e o tempo
Sempre sopra o semprevento
A sempretude do sempre
A sempremente passar
As unhas nas minhas costas
Doendo sem ver alívio
O lembrado e o oblívio
O colibri enterrado
O roceiro e a enchada
Nas costas me vem arar
Passa lenta a madrugada
Passa a palavra ardida
Que fere a funda ferida
Aberta antes de mim
Vai-se a mágoa, o sentimento
Nas águas do lago de furnas
A festa da luz divina
A ordem determinada
A chuva da Santa Graça
Nas colinas do receio
Momento de comunhão
Quando os anjos se desvelam
Amplos campos de café
Descalvado de algodão
Infinito canavial
A chuva que vem molhar
Cavalos sem suas celas
Telhados sem seus beirais
E Jesus desce da cruz
Para nos salvar
Nos braços de sua mãe
Nos braços do Criso morto
A procissão vai passar
Se não fosse de passagem
A vida seria sem graça
E a paz da necessidade
Seria paga por Deus
Meu Deus de coroa e manto
Sua antiga majestade
A gala do seu quebranto
A pompa de seu legado
Sacrário na obscuridade
A missa da reclusão
A dádiva e a esmola
A renúncia da bondade
O carvão e a fumaça
O rei que já foi bem cedo
Ao reino em que vai reinar
Insinuando em decretos
O que é errado, o que é certo
Na Sua filosofia
O que é bem, o que é mal
O que rir, o que chorar
O que é o preço da vida
O que foi
O que foi e o que será
Pois essa senhora sabe tudo
Mas nada quer me contar
Numa hóstia elevada
Num cálice derramado
A liturgia da vida
A benção de nossa comida
No fogão do santo lenho
A nutrição do meu corpo
A dor de uma abstinência
E o mistério do espírito
Que guia o meu coração
Pelo sofrimento da vida
Sofrimento da consciência
Passa o arrependimento
E gesto contido em si
O tormento da verdade
Passa e fica logo ali
Passa a menina ao largo
E as razões para mentir
Passa e volta pela estrada
E passa a dor lancinante
Antes do belo horizonte
Passa antes de chegar
Passa antes de partir
O calar e o mentir
Nas tuas palavras secretas
Nas minhas partes repletas
Do desejo de partir
Liberta, antes que a tarde
Se desfaça no seu fim
Vento falando em latim
Flores de liberdade
Lá no alto da montanha
Liberta, e serás clarim
Liberta, e serás também
Lá no alto da montanha
Lá no alto da montanha
E quando ali retornarmos
Verás que nunca nos fomos
Pois o lugar onde estamos
O lugar onde estaremos
É sempre o lugar que somos
Ah Deus como tu és minha!
Ah Deus como tu és minha
Ah Deus, como eu era triste
Ah Deus, como tudo existe
Antes mesmo de existir
Tudo passa, tudo passa
Enquanto passa o delírio
Na flor e na palha do milho
A flor do lírio do campo
Passa todo o desencanto
Do passar, do não passar
Passa a relva, a reza passa
Passa o boi, passa a boiada
Passa a água a murmurar
Passa passa passa passa
Nada disso vai passar
E essa poesia tão tola
Que não é tua nem minha
Nalgum livro vai ficar
Uma saudade tão velha
Jamais a ninguém pertence
Uma rosa no sertão
Procurada pelo sol
Daquele mesmo arrebol
De quem não tem Itabira
Não tem vida para viver
Nem tem sonho para sonhar
E fica sendo de todos
O que não é teu nem meu
É dos currais e do gado
Do passarim passaredo
Da negra jabuticaba
Do jagunço na batalha
Que mandava me matar
Do pernil numa fornalha
Naquele grande buraco
Compadre meu Quelemém
Pato preto marrequinho
Galinha a cacarejar
"Beijo extemo, meu prêmio
E meu castigo,
Batismo e extrema unção
Naquele instante por que,
Feliz, eu não morri
Contigo.
Passa o boi passa a boiada
Passa o tempo mansamente
E o passsado anterior
Passa a rua que se inclina
No rumo daquela montanha
Vai pela estrada infinita
Dobra a esquina do amor
Passa a menina do doce
O doce desperdaçar
Passa a criança da escola
A praça a sente passar
Passa tudo, nada passa
Passa o boi, passa a boiada
Passa a vida que declina
Verbos no infinitivo
Conjugando a solidão
Ao dobrado som do sino
Para o meu triste destino
Gaiola de mambu fino
Passarinho na prisão
Pois quando eu era menino
Cacei muito passarinho
Mas hoje não caço mais
Perdido nos carrascasis
Escutava o seu chilreio
Mirava, acertava em cheio
Hoje não acerto mais
Eu era tão pequenino
Hoje sou ainda mais
Com as minhas esguias pernas
Subia as serranias
Para as lágrimas chorar
Lá no alto da tormenta
Onde toda a força venta
Onde tão longe se avista
E molhava os teus telhados
Os teus telhados de barros
Os teus telhados de musgo
Como chuva de lamento
Mas hoje não molho mais
As lágrimas purpurinas
Molham o peito da menina
Que morreu de apaixonar
Eu vim de lá das colinas
Eu sempre vivi por lá
Lá nada passa e se inclina
Na encosta da montanha
Tudo o que vem de cima
Tudo que vem do alto
No mistério do cobalto
Negro ouro reservado
A madre a oferecer
Meu reino por um cavalo
Meu reino por um santuário
Meu reino por um cordão
O reino ds altas terras
O reino da solitude
Reino das água claras
Caindo pelo grotão
Reino de contas douradas
Reino de grande verdor
As aves que aqui gorjeiam
Cantam o teu sofrimeto
Mas aqui, embora doa
O povo tem mais amor
Passa a serra e a tormenta
Passa tudo sem passsar
A cancela aberta passa
O queijo a me perguntar
O que passaste, menino?
Por aqui bem devagar
Passa tudo, passarada
Passa o boi, passa a boiada
Passa a lua equilibrada
No desespero da noite
Da madrugada o apelo
Na sombra do meu cabelo
Passo a passo o pesadelo
Pesando o meu sonhar
Passa a velha encarquilhada
Passa a lua a suspirar
A vida não deu em nada
Nada me meio a calhar
O beijo que tu levaste
Para uma vila no sul
Para a corrente do rio
Para o amor, amavio
O barro do joão-de-barro
O desenho de um canário
E o meu coração azul
As rédeas da liberdade
Antes que passe a tarde
Antes que cesse o vento
A vida nunca é de tarde
A vida nunca é solteira
A vida é uma brincadeira
Que se brinca sem brincar
Debaixo da laranjeira
Atrás do fogão a lenha
O muro de uma açucena
A queda da bungavilia
A florzinha do jasmim
A vida nunca é pequena
Pequeno é o seu altar.
Bom Deus, agradeço tudo
Rezo à noite e rezo mudo
Amém
Um rosário desfiado
Nos meus dedos de menino
Depositário das obras
Do sagrado coração
E do mistério da vida
Mistério da confissão
Amém, amém para sempre
Amém, que só sei rezar
O silêncio de uma reza
O silêncio de uma reza
No teu seio tão premente
Soluça o tempo escasso
Per omnia suculorum
Roda na roda o cilício
Pila no pilão o trigo
Meu coração apressado
O frango bica o meu peito
No pasto a coruja pia
Num sonho desentendido
E o menino em em riste
Jogando pedras na estrela
No açude prateado
O seu corpo mergulhado
Cobria a cabra no cio
E uma égua indolente
Na alcova da colina
Até que a noite acordasse
E se desprendesse o frio
Das alturas das montanhas
Debaixo de um céu de açoite
Numa neblina espessa
E o medo fazia a reza
Sair do pequeno ninho
Protegei Santa Maria!
Protegei que estou sozinho
Ave, Santa Maria
Ave perdida no céu
Ave sonora rainha
Ave perdoa o teu filho
Que não sabe perdoar
Que não sabe perdoar
Passa a reza proferida
No silêncio da cidade
Passa a,partida, o retormo
Passa a ausência do mar
E vai qualquerm momento
Adiando o meu castigo
Pois Deus se zangou comigo
Porque peqei, Santa Madre
Pequei contra a castidade
Pequei contra o não pecar
Pequei contra a minha sorte
Pequei contra o meu desígnio
Não soube resignar
Visível flor caróa
Pinheiro todos amarelo
A lavadeira a lavar
Lençol do meu branco pranto
A priminha não morreu
A priminha foi pra lá
E o teu pranto, pranto, pranto
Era branco como o manto
De nossa senhora da terra
De nossa senhora de tudo
Era branco o pranto teu
Era pranto como o meu
A Senhora Aparecida
Então foi que apareceu
Passa
Passa o fim
E o começo
A fúria passa
E o avesso
Do que passou
Passará
E passa o sol
Num declínio
Brihando
No seu caminho
Nem diz adeus
Ao partir
Passam
As palavras mais antigas
Os cantos religionais
Nos velórios as cantigas
Vão ficando para trás
Adeus
Nos campos gerais
Meu avô foi tropeiro
O meu pai adarilho
E eu pito o meu tabaco
Deitado na palha do milho
O meu amor foi primeiro
Teu amor ficou comigo
Diziam os velhos antigos
Amor sempre vai ficar
Amor que fica primeiro
Amor picando o meu peito
Amor verdadeiro amor
Amor beijando meus lábios
Um amor no cativeiro
E hoje diz o meu filho
No momento derradeiro
Indo das montanhas às abas
No meio de bois e cabras
O amor sempre foi demente
O crente de amor é tolo
Não se elogia um burro
Antes de um atoleiro
Amor nunca foi cigarro
Que se queima num braseiro
E aquelas cinzas que passam
São cinzas eternamente
Já dizia o meu avô
E minha avó repetia
Amor que fica soziho
É amor que parte primeiro
O meu avo tropeiro
Viajava o dia inteiro
Pelo caminho da pedra
Pois na pedra tudo fica
E passa o passo a seguir.
Passa a lua e madrugada
Passa o verso e a passarada
No passeio distraído
Passa, passa o boi passa a boiada
Passa a peneira rachada
Passa o momento de rir
Passa
Nos olhos do rio Sapucaí
Do cálice consagrado
Do escuro confessionário
O mapa do meu tesouro
Daquele menino que fui
Fui menino e não passei
Tanta fé no coração
E não me deixaram passar
Um menino que subia
A ladeira todo dia
E ia dar injeção
No velho tuberculoso
Deitado no seu colchão
De palha e desassego
Salve, salve Rainha
Mãe da misericórdia
Salve santa da tísica
Salve as almas do lugar ![
E na sombra do sembrante
Uma luz vinha luzir
Azulda lamparina
Bailada na minha sina
Deus há de perdoar
Viste a menina pálida
Que a baile não foi bailar ?
Chorou toda a madrugada
Desmaiada no no despaldar
Sepatinho de veludo
Mamãe me mandou ficar
Veio o moço capa e espada
Veio o ímpeto do dia
O travesseiro de pena
E toda a melancolia
Da janela sempre aberta
Passando a vida acolá
"O amor já é de si
Um grande arrependimento"
Debrucaçada no convento
Só não passa pensamento
Devaneio enfim não passa
E a chama que sempre arde
Ela reza e quer amar
Mas o amor não permite
Abnegado em tormento
O lamento não aceita
Não suporta a gelidez
De um vento sublunar
Receita de pão-de-ló
Forno de rosca caseira
Menina despedaçada
Bordando pano de prato
O pé fora do sapato
O tapete a desfiar
O tapete dos meus sonhos
Teus pés a cariciar
Passareim, tu passarás
Passaremos para trás
À sombra do tamarindo
Debaixo dos bananais
Passaremos, passareis
Cada um tem a sua vez
Passos livres no roça
Euclides na sua horta
Zé Luiz na piscininha
Compadre meu bom Francisco
Fumando do seu tabaco
Sorrindo flores de hibisco
Comadre sá Terezinha
Preparando com polvilho
Biscoito e café adoçado
No açucar do paraíso
O latido do cachorro
Túmulo da vovó morta
A porta do cemitério
Três desejos numa igreja
Esse destino-meu-Deus
A fazenda onde mamãe nasceu
Uma fazenda singela
Com lampião e cancela
Porta e janela azuis
Galinha ciscando o milho
Córrego pelo quintal
O matuto do Caraça
Que não cança de agachar
Agachado no caminho
De cada um passarinho
Como se ali fosse o mundo
Ali o mundo não é
Mas um pedaço a ficar
Mundo mundo vasto mundo
Sem rumo determinado
Campos campos campos tantos
Num recanto tão perdido
Que se pode reencontrar
Bel fazer e bel-amar
Um cárcere ou qualquer outro
A esquecer e desdenhar
Por um gole de aguardente
Pois dois goles de cachaça
O matuto do Caraça
Notando o sol a deitar
Sem pensar no que passou
A querer desconfiar
Abelha-de-poucas-flores
A sombra da gameleira
A meiguice do ficar
Passa o mestre sapateiro
A sovela e sovelar
Passa o José carpinteiro
Com vergonha de seu nome
Um serrote e um martelo
Passa o menino corrido
Esquecendo o bé-a-bá
E vai morrendo de fome
Arroz-doce, mugunzá
Passa o padre derradeiro
Para os prazeres provar
Passa a velha rezadeira
Murmurando as verpertinas
A viúva deserdada
A adúltera cristã
Passa a horda dos arcanjos
E a legião dos soldados
Passa a louca desvairada
O vadio embriagado
Passa o judeu errante
O abafador a matar
O protestante a matar
O protestante a reler
Palavras em livro preto
Promessa em turmalina
Na névoa desta manhã
Mentiras se enredando
Pelas frestas da iliada
Passa uma sonhadora
Com suas hostes pagãs
Passa o teatro do circo
Passa aquela prostituta
De estrelas embriagas
O catireiro a somar
Quando tudo é bom negócio
Por atacado ou varejo
O boticário a pingar
O solteiro apaixonado
Caminhoneiro perdido
Engenheiro a calcular
O passarinho pousado
O cachorro no farejo
O varredor a varrer
O mendigo a mendigar
Os sacos de cereais
Os secos e os afogados
Alho, cebola, fogo
As nuvens passam no céu
A chuva a delimitar
O tempo fértil da terra
E o lavrador lavrando
A vida no seu lugar
A vida no seu lugar
O padeiro perdoado
Por ter feito o nosso pão
O cego que ouve o sapo
Passa a mulher carpindo
A morte, último inverno
A sonâmbula que voa
A invejosa em seu melindre
O cabrito a saltirar
A mãe que nos desenreda
As irmãs maledicentes
A maldizer com três pragas
O homem que quer três homens
Os rapazes catamitos
Na sua cama a gozar
O estrume do cavalo
O esterco da galinha
A água tão cristalina
A vida no seu lugar
Na igreja e na cozinha
Na panela a fumegar
Mexendo em tachos de cobre
Os doces de uma rainha
Morando em minha cintura
Nossa Senhora de Fátima
Nossa senhora da lágrima
Nossa senhora da cura
Nossa senhora do mel
Nossa senhora da pátina
Nossa senhora do esmero
Nossa senhora cristal
Minha senhoro, socorro
Quase morro
Passa a caixa da ameixa
Fica a resina do gosto
Que não foi mentira, não
Resta a colheira das flores
Que o menino bom servia
Num copinho de aguardente
Discreto como a semente
Antes do seu desflorir
Num albergue de tilápias
Casebre de buriti
A tesourinha no fio
Desempenhava acrobacias
Vida, vida bem pretinha
Tua vida, tão sozinha
Sozinho num gabinete
Num banquete de palavras
A silhueta do sonho
Numa casa violeta
Escrevendo num caderno
Versos caídos do céu
Na mais turva tempestadee
As perguntas sem respostas
Num estranho coliseu
De lágrimas e de cristal
A lágrima passa e o tempo
Sempre sopra o semprevento
A sempretude do sempre
A sempremente passar
As unhas nas minhas costas
Doendo sem ver alívio
O lembrado e o oblívio
O colibri enterrado
O roceiro e a enchada
Nas costas me vem arar
Passa lenta a madrugada
Passa a palavra ardida
Que fere a funda ferida
Aberta antes de mim
Vai-se a mágoa, o sentimento
Nas águas do lago de furnas
A festa da luz divina
A ordem determinada
A chuva da Santa Graça
Nas colinas do receio
Momento de comunhão
Quando os anjos se desvelam
Amplos campos de café
Descalvado de algodão
Infinito canavial
A chuva que vem molhar
Cavalos sem suas celas
Telhados sem seus beirais
E Jesus desce da cruz
Para nos salvar
Nos braços de sua mãe
Nos braços do Criso morto
A procissão vai passar
Se não fosse de passagem
A vida seria sem graça
E a paz da necessidade
Seria paga por Deus
Meu Deus de coroa e manto
Sua antiga majestade
A gala do seu quebranto
A pompa de seu legado
Sacrário na obscuridade
A missa da reclusão
A dádiva e a esmola
A renúncia da bondade
O carvão e a fumaça
O rei que já foi bem cedo
Ao reino em que vai reinar
Insinuando em decretos
O que é errado, o que é certo
Na Sua filosofia
O que é bem, o que é mal
O que rir, o que chorar
O que é o preço da vida
O que foi
O que foi e o que será
Pois essa senhora sabe tudo
Mas nada quer me contar
Numa hóstia elevada
Num cálice derramado
A liturgia da vida
A benção de nossa comida
No fogão do santo lenho
A nutrição do meu corpo
A dor de uma abstinência
E o mistério do espírito
Que guia o meu coração
Pelo sofrimento da vida
Sofrimento da consciência
Passa o arrependimento
E gesto contido em si
O tormento da verdade
Passa e fica logo ali
Passa a menina ao largo
E as razões para mentir
Passa e volta pela estrada
E passa a dor lancinante
Antes do belo horizonte
Passa antes de chegar
Passa antes de partir
O calar e o mentir
Nas tuas palavras secretas
Nas minhas partes repletas
Do desejo de partir
Liberta, antes que a tarde
Se desfaça no seu fim
Vento falando em latim
Flores de liberdade
Lá no alto da montanha
Liberta, e serás clarim
Liberta, e serás também
Lá no alto da montanha
Lá no alto da montanha
E quando ali retornarmos
Verás que nunca nos fomos
Pois o lugar onde estamos
O lugar onde estaremos
É sempre o lugar que somos
Ah Deus como tu és minha!
Ah Deus como tu és minha
Ah Deus, como eu era triste
Ah Deus, como tudo existe
Antes mesmo de existir
Tudo passa, tudo passa
Enquanto passa o delírio
Na flor e na palha do milho
A flor do lírio do campo
Passa todo o desencanto
Do passar, do não passar
Passa a relva, a reza passa
Passa o boi, passa a boiada
Passa a água a murmurar
Passa passa passa passa
Nada disso vai passar
E essa poesia tão tola
Que não é tua nem minha
Nalgum livro vai ficar
Uma saudade tão velha
Jamais a ninguém pertence
Uma rosa no sertão
Procurada pelo sol
Daquele mesmo arrebol
De quem não tem Itabira
Não tem vida para viver
Nem tem sonho para sonhar
E fica sendo de todos
O que não é teu nem meu
É dos currais e do gado
Do passarim passaredo
Da negra jabuticaba
Do jagunço na batalha
Que mandava me matar
Do pernil numa fornalha
Naquele grande buraco
Compadre meu Quelemém
Pato preto marrequinho
Galinha a cacarejar
"Beijo extemo, meu prêmio
E meu castigo,
Batismo e extrema unção
Naquele instante por que,
Feliz, eu não morri
Contigo.
Roberto Gonçalves
Escritor
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