A Gente Brinca de Morrer Todos os Dias
A gente brinca de morrer todos os dias
quando digere a agonia
da rês que foi abatida
pra ser bife em nosso prato.
Quando sai à rua sem luvas
sem guarda-chuva
diante do alerta de sangue
do sinal que nos assalta.
Quando perde a carteira e a crença
porque um anjo causou mal aos nossos bens
e vê a fé desfalecer, e o amor desfalecer
e vê a ira apoderar-se da ternura.
A gente brinca de morrer todos os dias
em cada aurora que se perde
sem tempo, sem horizonte,
sem olhos, sem encanto para ver o sol nascer.
Porque passamos sem perceber
a rosa que sinaliza a poesia no concreto
e o pássaro urbano que, detido na gaiola,
declama a dor da floresta.
A gente brinca de morrer todos os dias
em tudo aquilo que soma sem poder levar,
naquilo que não divide pelo medo de perder,
no que perde, sem sentir, pelo medo de ganhar.
A gente brinca de morrer todos os dias
quando lava as mãos impuras na desgraça dos jornais
e se farta de conforto e enfarta de ambição
pra ser mais do que precisa.
A gente brinca de morrer todos os dias
pelo excesso de deuses e a miséria de amor.