Testamento

Deixo-te

os meus bens mais caros.

O melhor de minhas posses,

tudo que ganhei quanto vivi.

Deixo-te meu patrimônio

para que fiques amparada,

não pelo que possas possuir

mas que possas desfrutar

quando em mim o sol se apague.

Fica minha coleção de estrelas,

topázios, esmeraldas, ametistas.

A Caixinha de Jóias do aglomerado

(dentro do Cruzeiro, junto à Beta Crucis)

incluído o rubi,

bem ao centro,

circundado de safiras.

Em noites de verão,

observa o céu, as galáxias espiraladas,

o efeito da luz sobre o azul,

a perspectiva de infinito,

a eternidade esplendorando

numa tela divinal:

“A Noite Estrelada”.

Deixo-te o van gogh

que luziu na minha insônia.

São tantos quadros,

uma fortuna incalculável...

Ocasos impressionistas,

auroras clássicas.

Ah, naquela rocha que o vento esculpiu

à beira-mar

há um cavalo cubista

(lembra Guernica...)

Repara bem ao pôr-do-sol...

Deixo-te também essa paisagem

que adquiri na juventude.

Quando fores à praia, à noite,

terás uma diversidade de sonatas

derramadas,

concertos de maré harmonizada

com violinos sussurrando nas areias,

violoncelos em ondas seqüenciadas,

flautas e flautins solando vento.

- Aplaude! Aplaude! Aplaude!

- Bravo!

- O mar é teu!

Deixo-te a poesia

em floração desconsolada

nas orquídeas de cetim

sob a guarda do ipê.

A ternura febril da laranjeira

que se veste de núpcias

pra chorar lágrimas de pétalas...

Os madrigais que o sabiá

sola ao sol

em dueto com o rio

que transborda em melodia.

Deixo-te a preciosidade da arte

na humildade franciscana

com que o sol se doa ao trigo

na ourivesaria das espigas.

Com que a lua se reparte

na lapidação das ondas.

E a paciência musical

com que o vento

esculpi as dunas.

Os poemas que escrevi

com suor e sangue,

riso e lágrima,

descrença e fé,

- os poemas que são teus -

esses não te posso deixar

porque são feitos:

de pão e água,

de calor e sombra,

de afago e doação,

de candeeiro e livro

de rosa e chave,

de mesa e cama

e há tanta gente neste mundo,

à intempérie da vida,

sedenta de ternura,

faminta de amor.

O demais é teu.

O resto é da terra.