CONDIMENTOS & MAIS
CONDIMENTOS I (28 ABR 12)
Ninguém eu quero que a outrem pertença,
Somente aquela que não pertence mais.
Quero a umidade desses seus canais
Quero a doçura que transmite, intensa.
No desenlace final da desavença,
Quero a explosão perdida no jamais,
Quero meu barco aportado no ademais,
Onde a certeza destrói qualquer descrença.
Que sejas minha como nunca foste
De ninguém mais e nem serás também.
Quero o combate em que não há derrota;
Quero teu ventre quando ao meu se encoste
E o quero aberto na apoplexia dos que creem
Nesse martírio que tudo o mais embota!
CONDIMENTOS II
Quero de ti os beijos outonais,
Já desgastado o esplendor primaveril
Da insegurança e vaidade juvenil,
Botões abertos a abelhas estivais.
Quero de ti a calidez das matinais
Cortinas a se abrir no céu de anil.
Quero de ti o gosto de esmeril,
Não os sabores da infância naturais.
Quero a mulher que já sofreu sua parte
E que sabe dar valor à realidade,
Já que não sou seu príncipe encantado,
Mas que perceba em mim diversa arte,
Daquele que experimentou em novidade:
Seu belo príncipe em sapo transformado.
CONDIMENTOS III
É a madurez que traz os condimentos
Que adicionam o sabor de especiaria,
Donzela e jovem têm encanto e altanaria,
Mas seus sabores são fugazes sentimentos,
Quero a mulher que passou por sofrimentos
E assim perdeu alguma aresta que feria,
Deixando as artes com que seduzia
Para mostrar de si mesma os valimentos.
Quero a mulher de coração partido,
Que saberei, com carinho, remendar.
Quero a mulher de peito mais sofrido,
Que já sabe prós e contras sopesar
E não se prende ao sonho malferido
De se tornar princesa ao se casar...
CONDIMENTOS IV
Quero a mulher por dores sazonada,
Que saberá buscar em mim o que apreciar,
O pouco ou nada que tenho para dar
Espelho ampliador do pouco ou nada.
Quero a mulher pela dor divinizada,
Que viu a morte e o luto perpassar,
Que aprendeu a solidão a lamentar,
Sem se esperar, afinal, idolatrada.
E antes deseje ser a companhia
Desse carinho apenas transitório,
Pois sabe bem quão temporária é a vida,
Que outro perfume à vida me traria,
Pois já aprendi, em versejar inglório,
A dar valor à sua beleza envelhecida...
MISTÉRIO DE MIM SÓ I (29 abr 12)
Na clara escuridão da mente estomacal,
Um fígado fidalgo lavra a terra;
Cada mãe grávida se arma para a guerra
E os velhos nascem de parto natural.
Na negra luz, recordação feita total,
Cada caroço doce polpa encerra,
Cada ataúde a vida que se enterra,
Durante o dia a realidade fantasmal.
Sou mãe de mim nas cem cópias que crio
Da vida inteira o plagiador original
Soprando brasas no seco coração,
Que faço arder na corrente desse rio
Subindo para a fonte, em dom fatal,
Nos gases líquidos que expele meu pulmão.
MISTÉRIO DE MIM SÓ II
E nesse incêndio aquático me escondo
Em plena luz da sombra amedrontada,
Em sendo tudo, me reduzo a nada,
Em sendo surdo, tudo escuto num estrondo.
Por abismos vazios então eu rondo,
Minha alma seca de tanto ser violentada,
Do estupro de mim mesmo já cansada,
Nessa camada superficial que sondo.
Supérflua a superfície já entranhada
Das plagas próprias mais do estrangeiro,
Contaminada por mais sã doença,
Concreto o vácuo da sombra imensurada
Pelo lento escorrer do mais ligeiro
Inútil duvidar de toda a crença.
MISTÉRIO DE MIM MESMO III
Ando assim só e mal acompanhado,
Fervente de ilusões desiludidas,
As minhas fraquezas mais fortalecidas,
No ideal desfeito sempre aprimorado.
Soltas cadeias de um futuro amado,
Guardando em mim as dores escolhidas,
Encalvecendo as penas esquecidas,
Nessa aguardança pelo meu passado.
Na espera amara pelo meu presente,
Doce adoção de meu passado alheio,
Certa incerteza de um porvir impuro,
Que só em mim inteiro se apresente
O vácuo de um outrora sempre cheio
Da luz brilhante de meu canto escuro.
ESCRIBA DO VENTO I (30 abr 12)
Contra meus olhos o vento traz imagens
Que se inserem por suas comissuras;
Não imagens daqui, mas das lonjuras
Panoramas de geleiras e miragens...
Miragens são de nuvens tais aragens,
Como a nuvem de Juno, em troças puras,
Transformada por Zeus em estruturas,
Aparentes apenas em visagens
De sua esposa, do lar a protetora,
Para o mortal que se atreveu a apaixonar-se,
Para gáudio dos deuses vingativos,
A própria Juno mais que todos zombadora,
Até que Zeus cansou-se se vingar-se
E procurou por distração outros motivos.
ESCRIBA DO VENTO II
Mas o vento me penetra dos ouvidos
E não escuto apenas, também vejo
Esses estranhos objetos de desejo,
Para mim novos, por outros mais queridos.
Mas eles se me aninham; e compelidos
São os meus órgãos neurais, em tal ensejo,
A arquivar dentro em si o seu cortejo
E em minha lista de opções são inseridos.
E assim vão sendo, em ourivesaria,
As letras reajustadas, uma a uma,
Derretidas no cadinho e então ligadas
Em engastes cada imagem que queria
Ser refração para o mundo que presuma
Terem sido por mim mesmo imaginadas.
ESCRIBA DO VENTO III
Qual a taxa de prenhez destes meus versos?
Ocasiões houve em que havia uma barreira,
Um dique, uma barragem, cordilheira,
As amuradas e os rochedos mais diversos,
Para impedir-lhes a saída, assim dispersos:
Que só escapasse palavra mais certeira,
Frase de estanho e alpaca, corriqueira
Conotação de prata em véus inversos...
Houve ocasiões em que o volume se expandiu
Até o ponto de atravessar os montes
E suas comportas fui forçado a fechar bem;
Mas sinto hoje que sua força diluiu;
Jorram apenas no cristal das fontes;
Abro o chuveiro e solto o que contém...
ESCRIBA DO VENTO IV
Mas o vento prossegue a me lançar,
Pelas narinas, na boca e na epiderme
Novas miragens de ilusões e, inerme,
Eu permaneço para a entrada lhes cortar.
E no presente, passei a rascunhar
Dez a doze por dia, cada verme
A me escorrer das unhas ou da derme,
Achando um jeito de se manifestar...
E desse modo, já não sou somente o escriba,
Placidamente as tormentas a anotar,
Sem que interponha meu vigor mais racional,
Mas escravo dos versos ou seu auriga,
Somente as rédeas conseguindo dominar
Enquanto salta o seu cortejo triunfal!...