VELÓRIO & MAIS
VELÓRIO I (26 mar 12)
E eu me ponho a insistir pelo teu beijo...
Que seja voluntário e casto e puro,
Que sejas tu a preparar o ensejo
Por me deixar colher fruto maduro,
Negado para mim com tanto pejo:
Esse fruto roubado só no escuro,
Esse fruto devorado fez-se duro
Mas não se consumiu. Nobre desejo
Há de gerar maior que a dor do mundo;
Será beijo de amor tal qual não houve
Na vida tua e na minha até agora;
Será um beijo de esplendor profundo,
Que dê louvor a ti e a mim não louve,
Pois dado o beijo eu sei que vais embora.
VELÓRIO II
Mais permanente então, seria o beijo
Que nunca me foi dado e que imagino,
Esse sabor que anelo, pequenino,
Envolto em tessitura de meu pejo.
Qual borboleta em seu mais leve adejo,
Como o vento sobre os lábios, em refino
De poeira d’ouro, um pólen assassino
Que me deixe envenenado nesse ensejo.
Porque o ouro é no mercúrio refinado
E o beijo se refina na amargura:
Há sempre algo de azedo no ressaibo.
Porém no âmbar me queria conservado
Do beijo imaginário, em sua doçura,
Por mais que saiba que no beijo teu não caibo.
VELÓRIO III
Mas se coubesse e pudesse-me inserir
De tua boca rosada às comissuras,
Em longo instante de delícias puras,
Mau sedutor que se deixasse seduzir,
Eu ficaria escondido a me iludir
Que a boca fosse minha e mil agruras
No meu esconderijo, penas duras
Eu sofreria ao ver o seu abrir
Para outros homens em beijos de lascívia,
Que gostos acres assim eu sentiria
E até fugir de tua língua eu ansiaria,
Para lavar-me em água de lixívia
E resguardar assim meu corpo inteiro
De teu mau beijo, para mim o derradeiro.
VELÓRIO IV
E após sair, quatro velas buscaria
Para o velório tresloucado da paixão,
Acesa uma em pleno coração
E em ambos os pulmões duas plantaria.
A quarta vela então acenderia
Dentro da boca que viveu tal ocasião;
Com um sudário rasgado em proteção,
Minha cabeça em mortalha envolveria,
Para que os olhos que de ti se iluminaram
Permanecessem cegados doravante
E que os ouvidos não pudessem te escutar.
Minhas próprias unhas a tampa pregariam
Desse ataúde de um só beijo triunfante,
Que preferia nem ter chegado a dar.
VISITA A ESPARTA I (27 mar 12)
(Para Helena R. Pinto Botelho)
Fui visitar Helena em sua casa vazia
nada mais resta dela, até os móveis foram
para as casas dos dórios e ali douram
nessas sacadas que o sol ainda alumia.
Helena não está, partiu na nostalgia
de uma vida infeliz, porém ainda moram
sua coragem e calor. Sempre me agouram
sua beleza e louvor, tal qual dizia
o rapsodo que não a pode usufruir.
Era mui bela Helena. O coração
mal lhe cabia e tinha ouro
em suas próprias entranhas. Sem desdouro,
digo que foi mãe e amante de ilusão,
por todo o sangue que por ela fez fluir.
VISITA A ESPARTA II
Poucos vestígios dessa Esparta restam
em que Helena habitou com Menelau.
Foi destruída em breve dia mau,
igual que Troia. São pontos que se prestam
a dez reconstruções. Outros empestam
com sua presença o mesmo antigo vau.
Alicerces abriram no palácio, ao
qual com novos deuses hoje infestam.
Mas essa Esparta que nasceu mais tarde
tampouco perdurou e essa muralha
de pedras por escravos ajustadas,
dez séculos depois em incêndio arde
e de Helena a cinza o vento espalha,
outras as cinzas por teus passos agitadas.
VISITA A ESPARTA III
Nova Esparta existe hoje, um município
da nova Grécia, por modernos restaurada,
meio escondida, pois tem pouca nomeada.
Vetusto o tempo em que causou o malefício
a Atenas, no auge de seu viço.
Mas esta permanece renovada,
da atual Hellas a capital airada,
enquanto Esparta ficou em desperdício...
Sobre ela havia um bosque de oliveiras
e aos arqueólogos custou bastante esforço,
escavar esses restos de paredes.
Agricultores de índoles altaneiras
até desprezam aquele velho escorço
que com oitenta passos fácil medes.
VISITA A ESPARTA IV
Porque, de fato, nem descendem deles.
Os espartanos de Helena estão extintos;
Dos espartanos de Leônidas meus instintos
indicam-me que penses tão só neles,
mas também extintos foram. Filhos reles
facilmente por romanos mais distintos
escravizados foram e esses recintos,
por mais respeito que sobre eles veles
são os restos dos vestígios de outra Esparta,
pois realmente, essa casa está vazia
em que habitou Helena. Só há a memória,
que por tantas mil helenas se reparta,
cada uma delas em sua morada fria,
esquecida pela lenda e pela história.
MUDANÇA I
Eu te desejo os sonhos da alvorada,
no desjejum envolto em esperança,
mas que seja ao meio-dia realizada,
sem que essa espera tenha mais tardança.
Eu te desejo os ventos da mudança,
de uma vida melhormente transformada,
não nos sonhos guardados de criança,
mas numa vida adulta e realizada.
Eu te desejo o poder da decisão,
o dom de conhecer hora oportuna,
para estar no lugar certo na hora certa.
Eu te desejo, enfim, satisfação
em tudo que empreenderes: que a fortuna
esteja à espreita com sua bolsa aberta.
MUDANÇA II
Que te acolham azuis brisas de mudança
e te carreguem das nuvens os veleiros,
num furacão de sonhos pegureiros,
que sejam mais concretos que a esperança.
Que te recebam os anseios da criança,
perdidos pelos mundos verdadeiros,
capturados agora, derradeiros,
nos abraços de um amor que nunca cansa.
Que te enriqueçam idéias proveitosas,
e que consigas da vida, doravante,
melhor destino que teu viver de outrora.
E que sejam tuas mudanças como rosas,
cujos espinhos vêm, não obstante,
perfumados do olor da alegre hora.
descargA
as coisas acontecem, não importA
o que se possa fazer para evitá-laS
:o teu passado, o teu presente exportA
as coisas ao futuro, até cansá-laS
;algumas conseqüências não se abortA
quer sejam boas ou más: e aceitá-laS
é uma atitude sensata; não se cortA
certas torrentes depois de provocá-laS
:nem tudo ao livre-arbítrio se sujeitA
,as coisas acontecem: cai um raiO
,a morte chega, o carro abraça um postE
e para nada a revolta te aproveitA
:deus não castiga, nem te olha de soslaiO
,por mais que o inesperado te desgostE
ALMOR
Algo ocorreu que o sono hoje perdesse:
os sonhos que eu agora deveria
estar vivendo, ao princípio deste dia,
sumiram qual cansaço se esvanece...
Nem dormi duas horas, que tivesse
um longo ressonar, por trás da fria
madrugada em que o sonho reluzia
e dos olhos para os dedos escorresse...
Foi a mudança de horário, certamente,
que remexeu minhas horas: machucou
ainda mais o pouco que eu dormia...
E agora, que me vejo indiferente
a essa paixão que entre nós dois crescia,
é que avalio quão fundo me assaltou...
PEDAGOGIA
As coisas que te ensinam, não te iludas,
bem pouca relação com a realidade
apresentam. Escuta mais as vozes mudas,
cujos cegos murmúrios são verdade.
Assim, nessas certezas em que escudas
o teu corpo de crenças e saudade,
vives somente as ilusões agudas
das lendas que compõe a sociedade.
A história é diferente: a religião,
toda a política e vã filosofia,
tudo não passa apenas de postura,
necessária, talvez, e com razão,
para manter o governo e a economia,
mas não te mostram a verdade pura.
ALARIDO
até o ponto em que possuis Sabedoria
ela se mostra falha com Freqüência:
quando temias a chuva e a Ventania,
levavas guarda-chuva por Prudência;
hoje que achaste a Chuva não viria,
deixaste em casa e logo com Urgência
o vento e a chuva, plenos de Acerbia,
manifestaram-te o grau de tua Impotência.
Mas acalmou-se o Vento, esse invisível
companheiro esperado até com Ânsia,
quando o Mormaço oprime e a nuca esmaga.
E logo veio a Chuva, mais tangível,
que a alma abriga e que lhe dá Substância,
enquanto o Frio do vento nos afaga...
CANÇÃO DO ESTIO
Eu no calor funciono mal. Apenas
uma fração da normal capacidade:
sinto-me seco e morto; a opacidade,
melado pegajoso, em lentas cenas
se revela e me rebelo a duras penas;
pouco vigor demonstro na verdade,
minha carne evaporada excessidade,
minh'alma toscaneja nas alfenas,
já nem sequer sou eu nesse momento
tornado uma carcaça atrabiliária,
que preferia até largar aonde chegue,
tão usada que está em descontento,
por resfolegação tão arbitrária,
que ao menos seu suor o solo regue.
REGIMENTOS
Meu cérebro se põe a falar consigo mesmo:
Milhares de sinapses reunidas em comício;
Umas descrevem chocarreiro vício,
Outras que ascendem às frases mais austeras.
E, nessa discussão, assim me escondo à esmo:
Nem um só pensamento se torna desperdício;
Há esqualidez no equinócio e no solstício,
No sol das seduções, que bem ou mal, tu geras.
Não que megera sejas, por mais sejam partidos,
Nesse congresso pleno de tal democracia
Os sonhos probos meus, em morte e corrupção;
Exércitos patrióticos em poeira convertidos,
Por ti, campo de sangue, que até pareceria
Que todos sucumbissem de cínica ilusão...
ESTUÁRIO
Vou descobrir a casa do calor
e dar-lhe um tiro certeiro de espingarda;
depois, lançarei mão de uma alabarda
por perfurar-lhe o peito com vigor.
A seguir, sua cabeça cortarei,
enquanto o sangue amarelo se irradia;
pai dos insetos o calor seria:
com mais inseticida o cobrirei.
O calor para mim é o anjo mau
que me antegoza a pena derradeira:
(para os nórdicos o inferno nos gelava...)
Por esse sangue eu passarei a vau,
em busca da outra margem condoreira,
em que somente o outono se encontrava.
ESVAIMENTO
Nos três últimos dias nada fiz:
suei apenas e as flores do jardim
agüei por compaixão, longe de mim
a habitual compulsão pelo trabalho...
Mudou o horário e as aulas que não quis
comecei novamente e a contragosto;
apenas se esfriasse o meu desgosto
passaria, que o frio me dá agasalho...
Sinto-me inerme, porém, neste mormaço:
que corra o vento para meu regaço
e me devolva um pouco de energia!...
Porque não vivo, enquanto esta canícula
a própria alma a cozinhar espícula
e me evapora em miasma de agonia!...
PARCIMÔNIA
Eu já cheguei àquela idade velha
em que é fácil encontrar meus conhecidos:
moram perto uns dos outros, protegidos
num condomínio de habitação parelha.
O espaço é pequeno, mas lhes basta,
porque, afinal, todos se aposentaram:
ninguém trabalha mais, só se ajuntaram
E ate a preocupação deles se afasta.
Se eu quiser, será fácil visitá-los:
seus endereços muito perto estão,
com seus nomes escritos nas janelas.
Até retratos, às vezes, a indicá-los,
feitos de porcelana, mostrarão
que todos já preferem luz de velas...
EPITÁFIO
CONSELHOS, POR MELHORES, POUCO VALEM,
SÃO ACEITOS OU NÃO, SÃO ESQUECIDOS
OU RELEMBRADOS UM POUCO E JÁ PERDIDOS:
CONSELHOS MELHOR FORA QUE SE CALEM...
PORQUE CONSELHOS MUDOS PERMANECEM
DENTRO DE TI, DE FORMA PERMANENTE,
SENDO AS PALAVRAS MUDAS, MAIS PUNGENTE,
NO FUNDO DE TEU SER TE RECONHECEM...
É ASSIM QUE A ALMA A OUTRA ALMA ACONSELHA:
NÂO TENTANDO MOSTRAR O CAMINHO CLARAMENTE,
MAS QUANDO ENCETA A MARCHA, INDIFERENTE
A SER SEGUIDA - SE ALGUÉM SUA VIDA ESPELHA.
ESSE É O CONSELHO QUE A VIDA INTEIRA DURA
E ALÉM DA MORTE, ENQUANTO O AMOR PERDURA...