ESSÊNCIA DA ALMA & AMOR DE CÂMARA 22+

ESSÊNCIA DA ALMA (Enteléquia) I 13 mar 12

Tu és a lente com que olho para o mundo,

Lâmina d’água, filtro de um segundo,

Couro e epiderme, tegumento e véu,

Calor dos dias inúteis, som profundo,

A nuvem sob o sol, gosto iracundo,

Destino e órbita, ressonância e arpéu.

Deitado sobre ti, do amor já rubicundo,

Cheio meu peito do sonho mais jocundo,

Fulgor melífluo que me leva ao céu.

Não vejo o mundo senão pelos teus olhos,

Nas intempéries me defendes dos escolhos,

Sem ti não sou mais nada, cruz e poeira.

Mesentério a proteger-me em seus refolhos,

Âncora firme que me abriga junto aos molhos,

Final metáfora da busca derradeira.

Enteléquia II

Tu és a lâmina de água nos meus olhos,

Os leucócitos que se agitam entre os molhos,

A rede de plaquetas no meu sangue.

Tu és a minha defesa nos abrolhos,

O meu farol que ilumina tais escolhos,

O meu suspiro quando estou exangue.

A luz interna que incendeia meus antolhos,

Porto seguro nas carícias dos refolhos,

Sólida ponte através de todo o mangue.

E em ti encontro todos os atalhos,

Na afirmação, a despeito de meus talhos

Da crença antiga de que meu nada é tudo.

A afastar de mim cem espantalhos,

Virando a carta favorável dos baralhos,

Broquel e peitoral em que me escudo.

Enteléquia III

És para mim, afinal, da alma a essência,

Minha enteléquia ancorada na consciência,

Minha honra, minha coragem e meu pejo;

O meu socorro no momento da indigência,

Quando me sopram os laivos da demência

E a melodia se desgasta em falso arpejo;

A minha fermata no compasso da impotência,

Em seu perfume de oculta redolência,

Em que minhas redes neurais assim despejo:

Cérebro e mente em total desimportância,

Minhalma a tua sombra e substância,

Em teus cordéis minha razão de ser,

Minha vida adulta, a morte, a vida e a infância,

Toda a ilusão despida da inconstância,

Quando te vejo junto a mim permanecer.

INDEFERIDO I (12 MAR 12)

Se um dia retornares, meiga estrela,

que me procura sempre e não permite

que empós ela eu vá, mesmo que incite,

na comissura dos lábios, uma bela

sugestão de sorriso, um laivo apenas,

para falar de amor e então contar,

numa frase final, que desconfiar

eu devo dela... sorriso em que condenas

ao ergástulo frio da pálida esperança

tudo o que prometeste... que não confia

em si própria ela mesma, por saber

como muda de humores, sem tardança...

quero que saibas, porém, com nostalgia,

que eu confiarei em ti... até morrer.

INDEFERIDO II

Mas desconfiança gera insegurança

e mesmo que te busque, igual que antes

e ainda aqui te envie os meus descantes,

a insegurança gera desconfiança;

e para que segura essa confiança

consiga-se manter, igual que dantes,

é necessário que minhalma imantes

com tua presença, em plena segurança,

porque me sinto qual agulha ou alfinete

que cai ao solo e então vem a tesoura,

levada algures para assim ser imantada

e nesse magnetismo que secrete,

tal atração em nada me desdoura

e assim a mente conserva-se encantada.

INDEFERIDO III

Mas é preciso ter olhos para ver

essa pobre agulhinha descartada,

se não houver um magneto ou imantada

tesoura que a atraia ao recolher;

então, estrela, se meu verso comover,

vem da distância em chamas ocultada,

nessa corona a outrem esperdiçada,

nessas mudanças de humor a padecer,

porque é difícil sustentar a esperança,

já que é tua luz que me confere a vida

e minha confiança esvai-se nessa morte;

recolhe pois do espaço a desconfiança

e fortalece minha ilusão perdida,

afastando de mim a alheia sorte.

AMOR DE CÂMARA XXII

Que vou dizer, que já não tenha dito?

Que esse amor, consumido de distância,

se fez indiferente... E sua importância

foi desbotando ao som de um débil grito?

Transformou-se num eco, como aflito

chiar de mim... estertorou a ganância

de um desvalido bafo de fragrância

antes de unir-se ao derradeiro mito...

Retorno para mim e me examino:

os sentimentos estão lá, despertos...

Ali perduram tantos sonhos bobos...

Escuto ainda o seu clangor de sino,

enquanto me contemplam, boquiabertos,

fazendo amor ao som de Villa-Lobos...

AMOR DE CÂMARA XXIII

É melancólica a música que ouço

de um lilás pálido e verde esmaecido,

um filamento inteiro, amortecido

em véu acinzentado e azul insosso.

É melancólica esta música que escuto

e mesmo quando tenta ser alegre

é a ilusão de um sonho ardendo em febre,

um pesadelo a expelir-se em gesto bruto.

E, mesmo assim, por dentro me renovo,

me esforço por sorrir; e até energia

produzo sob o efeito desta espera...

Enquanto penso em ti, eu me comovo

e gostaria de estar, nessa elegia,

fazendo amor ao som de Ginastera.

AMOR DE CÂMARA XXIV

Já esta é mais feliz, são seus acordes

mais propensos a encher-me de energia:

há alguma coisa nela, que me envia

à vastidão e faz que em mim transbordes,

incauto coração, à comoção propenso,

empós fios de ouro de outra negra teia,

qual mariposa que a si mesma enleia,

ao se lançar contra o invisível lenço

de perfeição estranha e inquebrantável;

e também eu, na busca reluzente,

mais outra vez nessa cilada eu caio,

porque quero alcançar o imponderável

que vejo de meu mundo sempre ausente,

fazendo amor aos acordes de Moncayo.

AMOR DE CÂMARA XXV [SCHUBERT II]

Muito poucos dominaram melodia

dessa maneira assim, incandescente,

com tal facilidade complacente

de esparzir, sem esforço, a fantasia.

Tão natural foi nele essa elegia

quanto exige de um outro esforço ingente,

tal se enfrentasse o tempo descontente

e, em vez de notas, fosse areia que escorria...

Também já partilhei do mesmo dom

de lançar harmonia no caminho,

mas um soneto possui mais singeleza.

E, deste modo, me dedico é a este som,

fazendo amor em gestos de carinho,

enquanto escuto de Schubert a beleza.

AMOR DE CÂMARA XXVI

Não me quiseste iludir, foste sincera,

não te agitava o mesmo sentimento

que a mim me avassalava o pensamento

no deslocado final da vida austera...

porém me amaste, ardente, quando dera

o ensejo, em meus braços de um momento...

ah, durasse para sempre!... em truculento

tomar e receber, amor de fera...

que, para mim, tornou-se equivalente

ao verdadeiro amor, foi inconteste:

que ao saber que outro amavas, deu-me um baque

bem fundo ao coração, pois foste ardente

nesse teu último abraço que me deste,

amor fazendo ao som de Dvorák... *

[Que se pronuncia Dsvôrjaque. Ah, esses tchecos!...]

AMOR DE CÂMARA XXVII

Não me buscaste mais, desde esse dia

em que em teus olhos entrou um novo amor,

que te escorreu ao longo dos cabelos

e te arfou as narinas de ambrosia...

Não me lembraste mais, desde essa noite

em que escorreste um gosto de calor

a quem adquiriu os teus desvelos

e te buscou ingente em seu afoite...

E nunca mais satisfizeste as fomes

que por ti sinto, sempre que nos vemos,

na ânsia nova do abraço em que morremos...

Por mais que essa esperança de mim tomes,

ainda recordo a vez em que estivemos

fazendo amor ao som de Carlos Gomes...

AMOR DE CÂMARA XXVIII

Nunca por mim tiveste a mesma alvura

dos sentimentos que te dediquei;

eram cinzas os teus; e me esforcei

para torná-los prata, em bênção pura;

mas despertou em ti estranha agrura

que jamais compreendi: talvez sonhei

apenas que existisse; não voltei

a examinar esse gris da criatura

que então viveu em mim, nas ilusões

que criei só, bem sabendo que criava:

foi arremedo de ti quanto eu amava,

qual se nunca reais fossem ocasiões,

embora a vida inteira em ti se perde,

fazendo amor com as óperas de Verdi.

TECIDOS E METAIS

Meus ossos eu moí por teu amor,

a medula eu tomei por linimento;

dos órgãos esfolei o integumento,

como embalagem de um presente de valor;

guisei minhas carnes em puro sentimento,

que transformei em versos de palor;

trancei cabelo e barba para expor,

num manto de carinho, o sedimento

do que minha vida tinha de precioso

e tudo te ofertei, sem pedir nada;

recusei meus desejos, fiz-me prata,

estanho e antimônio, em doloroso

transmutar-se no chumbo da aureolada

coroa de um amor feito de lata...

QUENÓTICA

[ABSTENÇÃO DE USAR PODERES]

As letras de teu nome queimam fundo

dentro em meu coração tornado em pó,

no almofariz dos versos. sob a mó

que esmaga o trigo contra o ariel.

Penso haver-te esquecido, mas profundo

é o lanho em que escorreu a minha resina:

quando é vencido quem amor domina,

é prisioneiro tratado sem quartel.

Não que amor fosse pedir que me poupasse:

já não tenho mais vida, que te dei

e, no suplício, não posso mais sofrer,

que já sofri por ti, sem que ganhasse

nem o suor de ti, por que esperei,

ao ver na palma as letras que quis ler.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 08/05/2012
Código do texto: T3656763
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