DISFORIA & MAIS
DISFORIA I (21 FEV 12)
É doida essa esperança que me toca:
eu me sinto inteiramente conectado,
como se assim não fora deletado
o meu passado de ânsia por tua boca.
Eu te vejo a dançar e minha voz rouca
se torna de repente. Conquistado
apenas de passagem. Dominado
pela visão que em meu córtex espoca.
Que sejas sempre assim, no doravante,
olvidado o passado azinhavrado,
mas que te portes igual que em minha ilusão,
qual se estivesse em coma delirante
e apenas aquiescesse, avassalado
pelo absurdo de tal transformação.
DISFORIA II
E enquanto esses teus beijos se acalmaram,
bem menos de paixão que de carinho,
eu me acomodo ao gozo comezinho
de recordar os que me conquistaram...
Esses beijos que da vida me roubaram
que antes eu tivera e, de mansinho,
entraram pelas glândulas, qual vinho
e inteiramente assim me dominaram...
Teus beijos comedidos são mais raros
que esses antigos, feito de sexor,
não que mos negues, mas menos do que antes
porquanto ainda me prendo aos desamparos
que me atraíram, febril, ao teu amor,
e me devoram, tal qual faziam dantes...
DISFORIA III
Já não te vejo dançar o meu presente,
igual dançaste todo o meu passado,
ficando meu futuro intercalado
nesses teus passos de clarão nascente.
Ante a tevê te encontro mais assente
e me puxas para ela, do teu lado,
nesse doméstico conforto, sem alado
viajar de excitação onipresente...
Mais ainda tenho meus instantes de euforia,
quando te sentes inclinada ao impudor,
num certo timbre de até vulgaridade...
Nesses momentos, meu passado espia
e então comparo o atual, pálido ardor
com a fúria extinta que me foi eternidade.
REDE ÚMIDA
Quando penso na incrível complexidade
deste meu cérebro, em nada diferente
desse teu, da potencialidade
criada em mim por deus benevolente,
em que gravo minha vida, em reverente
núcleo de conexão, na vacuidade
que ainda posso preencher, capacidade
incalculável até mesmo pela mente
que nele residiu por tantos anos;
tão cheio de valiosa informação
e de cultura inútil, tal cadinho
de que brotam meus versos, meus enganos,
é que percebo o quanto sou mesquinho
ao expandir somente o coração...
DEPENDÊNCIA
Tudo que fiz, que faça ou que farei
depende do que existe no meu cérebro,
ferozmente defendido pelo cérbero
da consciência, que em tudo dita a lei.
Que me louvassem muita vez já escutei,
por ser inteligente -- e vejo apenas
que sei usar melhor estas pequenas
conexões, que assim defenderei:
somente emprego melhor o que me deram;
sempre alimento e fortaleço os laços
que se interligam nos anéis minúsculos...
Mas não é mérito meu o que fizeram:
não dependo de louvores ou de abraços,
mas do espantoso poder de tais corpúsculos...
REGRAS DA VIDA LIII (53)
Seja gentil ao longo de sua vida:
é bem mais fácil, na longa correria
dos dias modernos esquecer a cortesia
que em todas suas ações estar contida
deveria, a tornar menos sofrida
a vida das pessoas que, à porfia,
encontramos toda noite e todo dia
e a cujos sentimentos a devida
atenção devemos dar, sem esquecer,
especialmente, aquelas que mais vemos;
se forem estas para nós grosseiras,
façamos o contrário: um tal dever
é um bom investimento que obtemos,
em obrigá-las a serem mais ordeiras...
REGRAS DA VIDA LIII-a
Eu sempre agi assim, quando possível:
nada tive a ganhar com grosseria,
pois o que medo até pareceria
torno em prudência perante o perceptível
mau resultado de um enfrentamento;
ao ser gentil, em geral, ao ser cordato,
evitei muita briga e desacato,
sem dar satisfação ao sentimento
de raiva, que invadiu-me toda a mente;
talvez até pareça hipocrisia,
sorrir com o coração cheio de mágoa,
mas é sobrevivência, essa potente
mentira que os conflitos alivia,
embora o ódio nos encha os olhos d'água...
LUTA INGLÓRIA
Neurocientistas costumam referir-se,
denominando nesse seu jargão,
"degradação graciosa", uma expressão
que especifica a lenta decadência
com que as redes neurais vão destruir-se,
perdendo lentamente a fixação
de eventos mais recentes, quando são
submetidas de Alzheimer à experiência.
Também se emprega na computação,
quando um sistema assim desqualifica,
se torna obsoleto ou incapacita,
pela perda gradual da conexão:
que minha mente aos poucos se decresça
é o que mais temo ver que me aconteça.
HORIZONTES VAZIOS
Já decidiu o que fazer na vida
ou é a vida que decide por você?
Que há muitas armadilhas já se vê,
mas cair nelas ou levá-las de vencida
é pura escolha sua. Dar guarida
à indecisão, à culpa, a tudo o que
favorece o destino, o quanto dê
para levá-la, em ilusão perdida,
ao que fazer não pretendia jamais...
Recorde que segura o próprio leme:
seu problema é decidir qual seja o rumo...
Marque sua rota e não hesite mais:
quem se deixa assoprar é que mais geme
e vê sua vida consumida em fumo...
QUEIMANDO AS ÁGUAS
Depois que ela lançou sua alma às águas
e me deixou sem alma, em plena terra,
no inusitado que a solidão encerra
e foi alimentar o mar de mágoas;
depois que eu pressenti todas as fráguas,
em que o malho, qual arma de guerra,
se esbateu sobre mim, na dor que ferra,
como cravos de gelo em facas d'águas;
depois que pretendia independência
e nada precisar, na ausência dela,
sendo auto-suficiente em minha razão,
foi então que percebi quanta dolência
existe ainda em mim, perdida nela,
lançando ao mar as cinzas da emoção...
EM GAGUEZ CLARA
Eis-me aqui outra vez, jorrando tinta
por entre os dedos, em mortalha de papel,
nas frases que soprei, como granel,
sobre as ondas do vento, por que sinta
que é seu dever (o vento esgrime e finta)
levar às praias meus sonhos de ouropel,
dos ouvidos humanos, sem quartel,
diariamente, por mais que o verso minta,
quero também lançar, na estrada vaga,
que é o sopro das ondas, minha mensagem
à terra que flutue, mansamente
e diga a todos, como um fio de adaga,
quão aguçados são, em sua coragem,
os versos que te fiz, timidamente.
ATRAÇÕES ESPÚRIAS
Ainda amo, mas de forma diferente:
foi-se o elan brilhante do momento,
que nunca foi sexual, mais um portento
de percepção da outra: uma potente
fascinação pelas chances infinitas
de compreensão da alma, dos milhares
de caminhos abertos e de esgares
que poderia obter, dessas benditas
imagens recolhidas de seus olhos,
arfadas das narinas, dos refolhos,
sugadas de sua voz: subcutânea
essa atração, que bem mais partilharia
de quanto no futuro ela faria,
do que apenas de uma entrega subitânea.
HONESTIDADE X
A cada instante, no televisor,
surgem imagens subliminares:
Faça isso/compre aquilo, aos milhares
influenciando todo o nosso ardor.
Assim o sexo substitui o amor
e o romantismo trocado por esgares,
na sedução de falsos encantares.
na tentação do brilho multicor...
Sempre assim foi: as luzes da cidade
sempre atraíram novas mariposas
e era falsa a moral da sociedade.
Mas hoje nos impõem novos padrões,
de cunho comercial, nessas faustosas
orgias consumistas de ilusões...
HONESTIDADE XI
E como é fraca do conselho a voz,
diante de tantas ruidosas exigências!...
É tão fácil seguir, sem resistências,
ao que o comércio busca impor a nós!...
Assim na vida, em seu mover-se atroz,
encaramos o fulgor com complacências,
não nos bastamos, nessas veemências:
temos mais medo de quedarmos sós...
E, nessa falta de manifestação,
nos perdemos também, pois quem amamos,
percebemos pouco a pouco transformar-se...
E só após partido o coração,
quando é tarde demais, é que notamos
o restante desse amor esvoaçar-se...
HONESTIDADE XII
Por isso, não te iludas: por inútil
que pareça o conselho, diz ainda,
enquanto a consequência não se finda,
o que acreditas venha a ser-lhe útil.
Por mais que o resultado seja fútil,
pelo menos, tentaste, antes que vinda
fosse a discórdia; que a palavra linda
sempre conserva um laivo de inconsútil.
Cedo ou mais tarde, a tua honestidade
será reconhecida e até aceita
por aqueles a quem amas de verdade.
Não que sua vida se vá tornar perfeita,
mas de um instante de sinceridade,
alguma coisa sempre se aproveita...