NOVELA & MAIS
NOVELA
Encontrei uma idéia no caminho:
levantei-a do chão, devagarinho
e examinei-a, cuidadosamente.
Era uma idéia nova, parecia:
não estava ainda gasta, reluzia,
quando a girava na palma de minha mão.
Não era idéia minha, com certeza:
era uma idéia pobre e sem beleza,
mas poderia ser tratada com carinho...
Depois de trabalhada, era possível:
que tal idéia eu tornasse mais sensível
e mais se coadunasse a meu prazer.
Levei-a para casa, dei-lhe um banho:
curei-lhe a sarna, retirei-lhe o ranho,
depois lhe dei um prato de comida...
Arranjei-lhe um lugar em que dormisse:
num canto de minha mente; e refletisse
meus próprios pensamentos sobre a vida.
Quando acordou, nutri-a com meu sangue:
mostrei-lhe como andar na mesma gangue
das opiniões que sempre defendi...
Ela escutou minha voz e fez-se bela:
vestiu-se e maquiou-se; e da janela,
contemplava o mundo que passava.
Foi perdendo seus defeitos, engordou:
e por um certo tempo, até me amou
e me vigiava, pelo canto de seus olhos.
E tanto fez, que até me seduziu:
com meu próprio pensamento, me traiu
e nunca quis transformar-se num soneto.
Não era minha, afinal... Era da rua:
despiu-se de minhas roupas, fugiu nua
e foi-se embora, sem dizer-me adeus...
NO ENCALÇO DA NOVELA I
e por que de tal idéia deveria
afinal apropriar-me? Eu tenho tantas!
Tu mesma, se me leste, já te espantas
que assim, tão facilmente, eu poderia
compor sem dolo centenas de sonetos...
Uns melancólicos, outros de alegria,
cheios de graça uns, quase magia,
jorrando em catadupas de quartetos...
Mas é que a tal idéia, pobrezinha,
abandonada de todos, tão mesquinha,
acendeu-me lamparina ao coração...
E eu quis que bruxuleasse para mim.
De certo modo, fui egoísta, assim,
ao transformar em fluorescente esse lampião.
NO ENCALÇO DA NOVELA II
Essa ideia, por mais que parecesse
deixar-se trabalhar, foi sempre esquiva.
Era rebelde; ao invés de humilde, altiva,
como se um grande favor me concedesse
ao submeter-se a mim; se obedecesse
na maneira de agir, na cognitiva
busca de mim... Em tudo foi furtiva,
sem que sequer por instante se rendesse.
E, desse modo, a preparei e ao mundo
lançou-se enfim a reluzente gema,
cuja ganga eu retirara, em dom secreto
e até clivara, em lapidar profundo...
Pois digo dessa idéia: foi poema,
mas nunca sujeitou-se a ser soneto.
URDEFESAS I (Defesas primitivas) – 14 JAN 12
Quase toda a criança, desde o berço,
se acostuma a pensar que, deste mundo,
é o centro e que possui profundo
controle sobre um servo onipotente,
que à sua disposição se acha terso:
basta chorar, pois mesmo quando oriundo
de longe, ele aparece, sem ser iracundo,
mas atende a seus desejos, bem contente.
Mas logo o mundo diverso se revela,
o servo onipotente é mãe ou pai,
talvez irmão ou tia – e é incapaz
de conceder quanto a criança anela;
por isso esta revolta que nos vai
insurgir contra a ilusão que se desfaz.
URDEFESAS II
Toda criança é plenamente egoísta
e tem de ser forçada a conceber
que para na família um lugar ter
deva aprender como tornar-se altruísta.
Muitas vezes, é bem árduo perceber
a dor dos outros; difícil é a conquista
da simpatia quando o mal se avista
e na expressão do rosto se faz ler.
Pois não se sente nunca a alheia dor,
por mais que nos comova a simpatia:
padece cada um a sua doença...
E nos momentos de maior amor,
sempre rebrota uma certa antipatia,
mesclada por suspeita e por descrença.
URDEFESAS III
Às vezes, é a sondagem dos limites
que conduz, nessa busca da esquivança,
o mau comportamento da criança,
que atende dos impulsos aos convites.
Mas és tu que essa atitude lhe permites:
é dos adultos a tarefa da ensinança
e na tua casa jamais terás bonança
quando chega o momento e então te omites.
Porque nenhuma criança te respeita,
se lhe deixares plena liberdade,
sem lhe mostrar o ponto de parar;
bem ao contrário, de traição suspeita,
porque não lhe domaste sua maldade,
como forma de um amor maior provar.
URDEFESAS IV
E quem assim limita-se a deixar
uma criança em plena liberdade,
para fazer quanto lhe der vontade,
nada mais faz do que a prejudicar.
Que está de fato um sociopata a ensinar
ou um tirano contra toda a humanidade,
alimentando a indiferença sem bondade,
pela falta de limites a encontrar.
Porque a maldade pode ser punida
e até contê-la se pode conseguir,
mas nada curva a total indiferença
e o resultado será péssima vida
para a criança que alheia persistir:
fantoche apenas de uma angústia imensa.
URDEFESAS V
Porque é certo que fora do imediato,
paciente círculo de seus familiares,
ninguém aceitará seus peculiares
caprichos egotistas do insensato
coração, que nunca aceita o fato
de que os demais não são seus auxiliares
e que espalha prepotência sem cuidares
e apresenta exigências sem recato.
Se a família não o fez, fá-lo-á a escola,
pela ação e reação de seus colegas
e encontrará mais árdua adaptação;
logo sua turma aprontará a degola
de boa parte de suas pretensões cegas,
para mostrar-lhe seu lugar, sem compaixão.
URDEFESAS VI
Mas permanece o Servo Onipotente,
transmutado em gentil Papai Noel,
em que os desejos encontrarão quartel,
através da simpatia de um parente.
Mas sofrerá depois mal consequente,
ao finalmente reconhecer, com fel,
que essa mansa alegoria de ouropel
é criação social bem transparente.
Quantos confundem Papai Noel com Deus!
Também o mostram como Servo Onipotente:
quando um é falso, outro o será também.
E é por isso que muitos são ateus,
por que rezaram por algum presente,
para esse Deus que não é servo de ninguém.
ESCAVADOR I – 5 JAN 12
Como as florestas sob os restos crescem
De bosques mais antigos, a cidade,
Sobre os restos da mais velha humanidade,
Tende a crescer enquanto os anos descem.
E essas ruínas, que já desfalecem,
São recobertas até a opacidade,
Por entulho, por caliça, por vaidade
E as cinzas do passado já se esquecem.
Quando Schliemann Troia descobriu,
De nove cidades encontrou estratos,
Depois se acharam até vinte e três.
Quantas vezes o inimigo destruiu,
Sem deixar mais que a sombra dos retratos,
Veio outro povo e tudo então refez...
ESCAVADOR II – 15 JAN 12
E foi assim através de todo o Império,
Qual os romanos souberam expandir;
Foi este o império mais longo, até ruir,
Pois os romanos levavam bem a sério
O quanto construíam, desde o cemitério
Até ao circo, onde corridas assistir,
Aos templos para aos deuses erigir,
Do vasto Coliseu ao monastério.
E é provável que até durassem mais
Se a civilização ali durasse menos...
Porém a maior parte das cidades
Continuou a ser povoada, sem jamais
O barco das areias de mil remos
Conseguir extinguir-lhe a humanidade.
ESCAVADOR III
Até parece estranho que as cidades,
Desertadas por suas populações,
Submetidas por aniquilações,
Subsistissem com mais integridades,
Mas a areia dos desertos as vaidades
Cobriram integralmente e os vulcões
Formaram sobre outras seus colchões
De cinzas e de lavas nas idades.
E assim as preservaram, sem querer,
Durante séculos, até que a arqueologia
Desenterrasse dos mortos os salões,
Recuperando assim para o saber
O que não decompôs a biologia
Ou que não demoliram multidões.
ESCAVADOR IV
Pois foi assim que ocorreu nesses lugares
Que permanecem habitados por mil anos
Ou por dois mil ou mais, como os romanos,
Que nos legaram, a despeito dos pesares,
Seus aquedutos, os fóruns e os lagares
E até as estradas, seus deuses soberanos,
Suas leis e seus costumes mais humanos,
Que os praticamos ainda similares.
Mas esses blocos que foram soterrados
De um modo ou de outro nos perduram,
Enquanto os prédios foram demolidos,
Só os alicerces deles preservados,
Que as gerações seu bem-estar procuram,
No descaso das muralhas dos olvidos.
ESCAVADOR V
E foi assim que sucedeu, por muitas eras:
Os povos simplesmente construíram
Os seus prédios sobre outros que ruíram
E os templos seu lugar deram às meras
Casas modestas ao longo das esperas,
Até que novas preocupações surgiram,
Quando as românticas ruínas seduziram,
Na transferência do valor a outras esferas.
Por isso, onde existe mais cultura,
Tem mais valor uma ruína escura
Do que edifícios altivos e arejados,
Mas noutras partes, porém, ainda perdura
Esse desprezo pelos dias passados,
De que a memória chora a desventura.
ESCAVADOR VI
Nos anfiteatros de Espanha foi assim:
Descobertas as vetustas arquibancadas,
As Imas Caveas já quase niveladas,
Mas houve o esforço de revelar, enfim,
Em dezenas de outros sítios, outrossim,
Essas memórias hoje recuperadas
E em melhores condições já preservadas;
Pouco sobrou de Zaragoza ao fim
Das múltiplas nações que aqui habitaram
E os tristes restos que hoje vêm à luz
Nem de longe têm o brilho que alcançaram
As Imas Caveas que algures escavaram,
Mas nos degraus carcomidos ainda reluz
Um coágulo dos dias que passaram.
MALMÖ I – 18 JAN 12
Se fico assim, amanhecendo esperas,
de repente brota tudo, como um jato
e me ejaculo em versos, nesse ingrato
mister em que derramo tantas veras
de minhalma, esses lemes de galeras,
noventa escravos a remar, de fato;
sessenta velas ao vento, em arrebato,
enfrento as ondas como bestas-feras,
senhor de meu timão, mas não dos ventos,
meus galés a remar nas calmarias,
meu velame a recolher nas ventanias,
os caminhos do sangue em gestos lentos,
pingando gota a gota, neste espanto
de quem chora palavras sem ter pranto.
MALMÖ II
E que fazer, afinal? Só tive sonhos,
nunca planos na minha vida sem projetos,
sempre aceitei o presente dos afetos,
por mais estranhos fossem e bisonhos...
Eu mal busquei abrigos. Esses tetos,
sob os quais habitei, estranhos põem-nos
por sobre mim. E então, expõem-nos
às incertezas do mundo. Vi meus fetos
disseminados no esgoto do social,
sonhos de argila que nunca foi ao forno,
ideais com jaça, pesadelo quebradiço...
Nunca tive meus quereres, afinal,
somente realizei um dever morno,
amortalhado em meu prazer mortiço.
MALMÖ III
Vi, certa vez, um prego enferrujado,
meio dobrado contra uma parede;
fui assaltado por estranha sede
de conhecer em parte o seu passado.
À luz mortiça, meu olhar gazeado
só percorria aquela sombra – e vede!
Corriam figuras igual que numa rede
e os peixes se debatiam a cada lado...
Eram sombras em presa ao desespero,
que se agitavam quais sonhos futuros,
e me inspiravam atroz premonição
de que tais sonhos, por mais que fossem puros,
seriam tortos pregos, em que gero
tão só a ferrugem de sua desilusão...
MALMÖ IV
Quem mais assim avalia um pobre prego?
Qual azinhavre que nem mais reluz?
Não era ao menos um dos cravos de Jesus,
nem a comporta que regula o rego,
igual aos versos que hoje ainda te lego,
que embora não perdurem qual a cruz,
erguem-se tortos empós teus olhos nus,
abrem-se ao mundo em seu olhar de cego.
Que em tudo neste mundo há algo de ledo,
mesmo naquilo que é tido sem valor:
de um acidente o tresloucado berro,
até mesmo no esterco, em malodor.
Basta que saibas de que modo vê-lo
e encontrarás beleza em pobre ferro.
MALMÖ V
Contemplo agora esse prédio retorcido,
na novel arquitetura da vaidade,
nessa inconstância de toda a humanidade,
novo padrão de estética cumprido;
quer do carvalho copiar rugosidade
ou foi quiçá como serpente concebido,
talvez no Grito de Munch perquirido,
num desafio ao poder da gravidade.
E seu espaço interior, como é que fica?
Essas peças terão sequer formato,
em geometria romboide compelida?
E qual arcobotante aqui se aplica,
nos contrapesos sem qualquer recato,
mil imprevistos a copiar da vida?
MALMÖ VI
O prego é torto e o prédio é retorcido,
embora feito de galvanizado aço,
com engenhosa concepção no seu regaço,
pelo orgulho local assim nutrido...
Bem certo é que não seja perseguido
esse país por ciclone ou pelo abraço
de um terremoto ou de um vulcão o traço,
mas que vaidade clama o seu bramido!
De art-nouveau possui a influência,
mas em nada lhe repete a elegância,
é torturada Torre de Babel...
Talvez seja punida a incongruência,
mas nela vejo o belo da inconstância,
a que tanto a humanidade dá quartel...
Murchez viva (1º fev 12)
As flores que morreram no passado
Sempre deixaram fantasmas no jardim.
Elas inclinam as corolas para mim,
Estames e pistilos, no assombrado
Lençol de pétalas de aroma amortalhado,
Zumbis de hortênsias, vampiros de jasmim,
Almas folhadas, sem penas ter assim,
Cada perfume em meu olfato sepultado.
Qual a mulher que passou por mim na rua
E me lançou um odor inalienado,
Ai que saudade dos perfumes que perpassam!
E que demoram nas narinas, seda crua
E lá farfalham, em lamento continuado
Das sombras mortas que sobre mim esvoaçam.
AVÓS DE TRINTA ANOS I (2 FEV 12)
Antigamente se casava cedo
E se morria até mais cedo ainda,
Aos vinte anos a existência finda
E se vivia num constante medo...
Era comum que o nenezinho ledo
Morresse inda no berço e a esposa linda
Achasse a morte pelo parto vinda,
Colhida assim para eternal degredo.
De fato, era preciso o casamento
Que permitisse engravidar depressa,
Para que a raça perdurasse em frente
E logo vinha o envelhecimento
Das privações e dor que jamais cessa
Causado nessa mãe adolescente.
Avós de trinta anos ii
Assim os filhos nasciam sem demora
E se chegassem até a adolescência,
Logo estariam, na mesma permanência,
Para casar-se já chegando a hora...
Que a natureza nunca tem paciência
E nesses tempos azuis de nosso outrora
Em que a vida tão depressa se ia embora,
Repelia ferozmente a abstinência.
E essas meninas logo engravidavam,
Tornando as mães avós de trinta anos,
Coisa que então ocorria com frequência,
Sem que nada se achasse de indecência,
Continuadoras da raça dos humanos,
Que em pura congruência sustentavam.
AVÓS DE TRINTA ANOS III
AFINAL, PARA O CAMPO A MÃO-DE-OBRA
SEMPRE FOI NECESSÁRIA NUMEROSA;
ERA A RAZÃO PARA ISSO PODEROSA,
EM FORTE IMPULSO A VIDA ASSIM LHES COBRA.
E PARA A INDÚSTRIA A GENTE NUNCA SOBRA,
EM CONDIÇÃO DE VIDA PAVOROSA:
TEM CADA VEZ MAIS FILHOS CADA ESPOSA,
ATÉ QUE AO ÚLTIMO PARTO ELA SE DOBRA.
MAS A FÁBRICA TEM FOME E ASSIM A MINA,
QUE OS OPERÁRIOS MORREM AOS MILHARES
DE TÍSICA E EXAUSTÃO, BRIGAS DE BARES...
PORÉM POR MAIS QUE A VIDA ASSIM OPRIMA,
BROTAM CRIANÇAS EM MAIS FERTILIDADE
DOS JOVENS VENTRES BUSCANDO A LIBERDADE.
AVÓS DE TRINTA ANOS IV
É BEM DIVERSA A NOSSA VISÃO MODERNA,
EM QUE OS FILHOS SÃO MAIS UMA DESPESA,
EM QUE AS MULHERES CULTIVAM A BELEZA
E A JUVENTUDE QUEREM TER ETERNA...
NOVA TENDÊNCIA DESSE MODO ALTERNA:
SÃO OS FILHOS UMA FONTE DE INCERTEZA
E AS MULHERES, CONTRA A NATUREZA,
ADIANDO VÃO A SUA FUNÇÃO SUPERNA.
JÁ NÃO SE TORNAM AVÓS AOS TRINTA ANOS,
Pois só se fazem MÃES DEPOIS DOS TRINTA,
VASTA MUDANÇA tem A ATUAL CIVILIZAÇÃO
DO QUE A DO TEMPO DE GREGOS E ROMANOS,
POR MAIS ESTRANHA QUE, AFINAL, SE SINTA
lenTA MUDANÇA NestA NOVA GERAÇÃO...
Avós de trinta anos V
DE FORMA SEMELHANTE, MEUS POEMAS
JÁ ATRAVESSARAM DIVERSAS GERAÇÕES
E JÁ MUDARAM MUITAS VEZES DE INTENÇÕES,
CONSOANTE MEUS SUCESSOS E MINHAS PENAS.
HÁ UNS NASCIDOS HÁ POUCOS DIAS APENAS
E EXISTEM OUTROS DE LONGAS BROTAÇÕES,
RANÇOSOS RESTOS DE MOFADAS ILUSÕES,
AS FLORES MORTAS DAS VISÕES TERRENAS.
VELHAS CANÇÕES DE OCULTA MELODIA,
REENCARNAÇÕES DE VENTRES APAGADOS,
ESQUIFES DE MEMÓRIAS SEPULCRAIS
QUE, QUANDO OS LEIO, NEM SEI O QUE QUERIA,
NESSAS RUMAS DE RISCOS APRESSADOS,
PERDIDOS NA LONJURA DO JAMAIS...
AVÓS DE TRINTA ANOS Vi
São avós de trinta anos esses versos,
Espezinhados ventres que secaram
De tantos outros que de si geraram,
Pobres poemas em cinzor conversos.
E continuam por aí, dispersos,
Mortos em guerras que não partilharam,
Queimados em acidentes que evitaram,
Marchetados em cérebros diversos.
E contudo, ainda vivem a girar,
De mente a mente, em nova comunhão,
Enquanto eu observo o rodopio
Dos poemas netos de filhos a criar,
Em imóvel torvelinho de ilusão,
A renovar-se num perpétuo cio.
VASOS COMUNICANTES I (15 jan 08)
Dia virá dos tempos de mudança,
Em que juntos cruzaremos um portal:
É quando muda o quanto é natural
E as coisas todas se revestem de esperança.
É neste dia, que só a mente alcança,
Projetado muito além do bem e do mal,
Em que toda a hesitação tem seu final,
E se contempla o mundo igual criança.
Um mundo diferente, tudo imenso,
As velhas poluições amarfanhadas,
Consumidas em completa cremação,
Enquanto o amor nos acarinha denso,
Tantas promessas ao redor depositadas,
Que nos protegem como felpas de algodão...
VASOS COMUNICANTES II (6 fev 12)
Sobre o tapete, três pontas de lança
Se projetam, em feridas luminosas,
Três espelhos do sol, três rendas rosas,
Três pétalas esquivas de mudança.
O toldo corta boa parte da pujança
Desse calor do sol, luzes tortuosas,
Desconfortavelmente poderosas,
Que o escritório aquecem, sem tardança.
Assim fecho depressa as venezianas
E transformo o interior em outro ambiente,
Ao Sol recuso transpor o meu portal...
Secam as pétalas em seu calor de chamas,
Essas três lanças quebro no presente,
Com simples gesto de meus braços, afinal...
VASOS COMUNICANTES III
Mas lá fora o calor ainda domina
E aos poucos se transfere a meu ambiente,
Que o calor sempre se expande, contundente,
Enquanto o frio se encolhe, triste sina...
Mas o calor que ao inverno se destina,
Comportar-se parece diferente;
É como contraído de impotente,
Enquanto o frio se dilata em névoa fina...
São vasos comunicantes esses dias
Em que o calor se dilata, de imponente
Ou quando o frio por frestas se insinua...
Mas as estações se demonstram fugidias,
Em comunicação tão descontente,
Cada uma a nos cravar sua própria pua...
VASOS COMUNICANTES IV
Eu bem queria a existência de um portal
Que conduzisse a qualquer ponto da estação:
Que se abrissem as comportas, na ocasião
E se mesclassem os climas, afinal...
Mas isso é só quimera instrumental;
Não se conserva do calor a profusão
Para juntar ao frio, por derrisão:
Tudo o que existe, passa, ou bem ou mal...
Nada mais resta que a imaginação:
Só me resta guardar horas douradas,
Em que me deste, sem recusa, a mão,
Para assim ultrapassar portas sagradas,
Para minha própria catedral de exultação,
Em que tais sombras não sejam separadas...
VASOS COMUNICANTES V
E suponhamos então, que esse impossível
Seja nas veias da mente coagulado,
Que se possa guardar dia encantado
Em frascos de vapor imarcescível...
E nesses dias, em que tudo dá errado,
Abrir de leve a tampa e que, sensível,
Vapor de sonho se espalhe, imperecível
E corrija desse dia amarfanhado,
Todas as penas... Que seja transformado
Por esses vasos assim, comunicantes
E que a alegria recubra essa tristeza...
E que o rancor do dia malfadado
Seja coberto, só nos próximos instantes,
Pelas lembranças dos instantes de beleza...
VASOS COMUNICANTES VI
Porque, de fato, esse poder existe:
Esse frasco armazenado na memória
Tem o poder de diluir a escória
E um verdadeiro portal assim consiste...
Essas lembranças de outro dia de glória;
Dilui, portanto, sobre teu dia triste
Sempre houve algum que teu sonhar aviste,
Por poucos sejam ao longo de tua história,
Pois é assim que se faz para manter
O nível desses vasos contrastantes,
Basta o cuidado de aferrolhar instantes
Em que é mais forte e mais cruel o padecer...
Mas tanta gente só faz o justo oposto:
E assim destampa no presente o seu desgosto!
EX AEQUO [por eqüidade]
Esta mulher que amo, polvilho e sal de aurora,
a cada vez que a vejo, me invade a nostalgia:
primeiro por saber que a outro pertencia,
depois por perceber que livre se acha agora...
E que me procurou, ao tempo que fugia,
para bem longe e quando mais perto se chegava,
para bem perto ao tempo que o corpo me entregava,
para bem longe ao tempo em que a alma me luzia...
Pensar que a vi de novo, sentada do meu lado...
Pensar que, se atrevera, sua mão teria beijado,
e fiquei, todavia, contendo minha emoção...
Pensar que tudo foi somente um vão de aurora,
por dentre a escuridão, que me enche tanta hora,
porque não fui capaz de encher-lhe o coração...
DEPÓSITOS
Faço poemas demais. Nem sequer tempo
para os passar a limpo eu tenho.
São estorvo e peso, mesmo contratempo
sobre minha mesa. Sempre que empenho
a digitar meus versos, linha a linha,
já surge a idéia para novo signo,
meu pensamento esvai-se num desígnio
e a pilha cresce. E logo se avizinha
o tempo em que não mais será possível
sequer deixar em dia a produção...
E, ao mesmo tempo, eu sinto tal cansaço!
Muito melhor seria, de aprazível,
para acalmar o inquieto coração,
colocar minha cabeça em teu regaço...
URTIGAS
Ela chegou, furiosa de insegura,
em queixas lamuriando, de agressiva,
e logo quis saber: se uma lasciva
rival, me acariciara com ternura.
Se trabalhara muito, se despesas
tivera em demasia, nem sequer
se me sentia bem... só se mulher
me avaliara, com olhos de incertezas...
Só queria sobre mim lançar o fardo
de sua viagem tão desagradável,
que exagerava, por justificável
sentir: e então lançou-me espinho e cardo,
querendo apenas saber se era escutada,
sem permitir-se sequer ser abraçada...
A VIANDANTE
E foi assim: encheu-me de cansaço,
tirando-me a alegria de a rever;
e, no final, é meu o quefazer
freqüente, em vã espera de um abraço...
E espero, mesmo assim... Inda retraço
anos antigos, que busco reviver,
em que meu sonho era, sem poder
imaginar a que ponto meu espaço,
que ocupa tanto agora, invadiria
e tanta coisa amarga lançaria
sobre meu peito, sempre complacente...
Pois eu chegara até a ter saudade,
que não mostrou possuir; foi inclemente:
tirou-me a paz, sem dar felicidade...
AS JOVENS DE ROMA XLVII
ANTONIA
ELA CHEGOU A MIM QUAL CLANDESTINA
VISÃO PERDIDA AO FUNDO DA GALERA
DE MEUS SONHOS SELVAGENS... NEM A ESPERA
PREVIA ENFIM SUA AURA PEREGRINA...
E DESNUDOU-SE AOS BEIJOS, VOLUPTUOSA,
DESNUDOU-ME TAMBÉM, EM SEU DESEJO,
EM SEU CORPO IMPERFEITO ENTÃO A VEJO,
ANSIOSA EM SEU ARDOR, ABERTA A ROSA,
PARA POSSUIR A MIM, TREMENDO PASMO,
A ME APERTAR, APRESSURADAMENTE,
DENTRO DE SI, NA GRUTA PERIGOSA...
E AO ME PRENDER, ME PROLONGOU O ORGASMO,
DE MODO TAL QUAL NUNCA ANTERIORMENTE,
DURANTE TODA A MINHA VIDA LUXURIOSA.