Amo-te Sempre

Amo-te sempre

com um pouco de barco e de vento

com uma humildade de mar à tua volta

dentro do meu corpo; com o desespero

de ser tempo;

com um pouco de sol e uma fonte

adormecida na ternura.

Merecer este minuto de palavras habitando

o que há sem fim no teu retrato;

Este mesmo minuto em que chegam e partem navios

- nesta mesma cidade deste

minuto, desta língua, deste

romance diário dos teus olhos -

(e chegarão com armas? refugiados? trigo?

partirão com noivas? missionários? guerras? discursos?)

Merecer a densa beleza do teu corpo

que tem água e ternura, células, penumbra,

que dormiu no berço, dormiu na memória,

que teve soluços, febre, e absurdos desejos

maiores que os braços,

merecer os dias subindo das florestas - e vêm

banhar-se, lentos, nos teus olhos...

Merecer a Igreja, o ajoelhar das palavras,

entre estes cinemas visitando, em duas horas, a alma,

estes eléctricos parando atrás do infinito

para subirem os namorados, a viúva, o cobrador da luz, a

costureira

entre estes homens que ganham dinheiro, sangue frio, ou vícios,

ou medalhas

e estes telefones roubando a lealdade dos olhos...

Teus cabelos cheirarão ainda a infância

e a vento, depois de passarem por esta fome pública,

estes olhos com regras de trânsito, estes dias sujos,

estes lábios que já não ensinam o pomar

ou a fonte, nem têm gosto de leite e de aurora,

depois destes olhos cheios da pergunta de estarem vivos

em vão?

Merecer honradamente este poema, todos os poemas,

como quem parte, entre os dedos a brancura

quente de um pão!

Vítor Matos e Sá, in 'Esparsos'

Zorro Poeta
Enviado por Zorro Poeta em 20/04/2012
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