PARA RECONHECER &+

PARA RECONHECER II

11 JAN 12

e remexendo nos fundos da consciência,

como um ancinho a juntar as folhas secas

que um dia foram sonhos e hoje pecas,

torno a lembrar com estranha presciência

desse primeiro dia em que vieste,

como simples visita inconsequente,

fingindo apenas interesse indiferente

e apenas Teu perfume me trouxeste,

como se fosse nada, só lembrança,

simples jeito de matar leve saudade,

nada enfim que despertasse uma esperança

e no entretanto, tal doce falsidade

frutificou em nossos tempos de bonança,

cheios de amor gentil e sem maldade.

PARA RECONHECER III

e é por isso que agora reconheço

até que ponto Te sou grato por lembrares

que me eras disponível aos cantares

dos poemas de amor que aos poucos teça

e se bem que outra lembrança fortaleça

e outras mais se acumulem aos milhares,

foi da primeira vez que Teus olhares

penetraram bem fundo, sem que meça,

de forma alguma, a sua profundidade:

caso eu tivesse asas, voaria

para Te ver, sem que alguém achasse estranho;

porém minhas asas são tão só sinceridade

e se pudesse flutuar, então diria

que mais ninguém me despertou amor tamanho.

MORTES DE PAPIRO I (27 NOV 11)

A vida é assim: durante a convivência,

os pequenos rancores se acumulam,

aos poucos há o esgarço da paciência,

enquanto amor se faz pura incumbência.

Esse amor brando se desfaz em impotência,

ante os minúsculos desgastes que pululam:

as frases que se escuta de insolência,

as mágoas bem guardadas na consciência.

Mas nem por isso se faz separação,

nem por troça que um ou outra desacate,

mas através do empilhar dos dissabores;

que a vida tem uma válvula de escape

nas confidências que se faça a algum irmão:

traições pequenas que impedem as maiores.

MORTES DE PAPIRO II

São estranhos os afãs que nos afetam,

disfarçados em golpes da consciência,

sugerindo labor de penitência

pelos crimes incompletos que completam,

mágoas rústicas que em outras intersectam,

sem chegar a provocar a incandescência;

digladiando-se nos ares, na insolvência,

que pelas veias desafeto injetam,

sem que se possa indicar qual é a queixa

que do inconsciente nos traz ressentimento,

mero laivo em desconfiada prevenção,

quando teu coração não mais se deixa

entregar em total consentimento,

nesse aguardo inocente da agressão.

MORTES DE PAPIRO III

Bem sei já aconteceu isso contigo,

já sentiste tais efeitos, muitas vezes,

nesse controle com que raiva sopeses,

mal percebendo a emboscada do perigo:

ressentimentos não se encerram em jazigo,

bem ao contrário, amadurecem muitos meses,

até que, de repente, ao amor leses,

de forma tal, que nem sequer te digo...

Porque não sei de ti o que fizeste,

se realmente houve tal fermentação:

feias injúrias que se aceita em plena calma.

Mas eu sofri o que também sofreste,

quando escarlate se faz a pigmentação

desse laranja encardido de minhalma.

MORTES DE PAPIRO IV

Mágoas não morrem quando são perdoadas,

nem permanecem em sua tumba inertes,

sem decompor-se lentamente, são solertes

e até parecem imóveis e encerradas...

As sepulturas, porém, são solos férteis

a as magoas se renovam, desgrenhadas,

se esfazem em vapor, gaseificadas,

saindo pelas frestas, se revertes

a teu passado e vais ressuscitar

esse amor morto, que na tumba espera

por teu cadáver, com dentes transparentes

e saem múmias de rancores a voar,

enquanto o vento mansamente gera

mil armadilhas sutis e permanentes...

MORTES DE PAPIRO V

E te despertam lágrimas no olhar

esses papiros de raiva, ressequidos,

nessa fumaça dos altares esquecidos,

de antigos deuses de alheio palpitar.

É nessas lágrimas que rancores vão nadar,

sendo por sal e soro revividos;

de outras tristezas se fazem bem nutridos,

para com força renovada te abraçar.

Também eu sofro tais mortes transitórias,

de legendas em hieróglifos pintadas,

sobre o papiro calcinado e exangue,

e permito que renasçam das escórias,

enquanto corro sobre pedras encarnadas,

para torná-las verdes com meu sangue.

MORTES DE PAPIRO VI

Melhor assim deixar fogo de palha

a consumir as pequenas agressões;

nesse protesto de minúsculas traições

fraca fogueira se faz de maravalha,

enquanto as mil adiadas explosões

são rio de lama escorrendo pela calha...

Por extensão muito maior se espalha

a fúria em brasa de dois corações.

E recomendo essas pequenas brigas,

sem que nada irremediável seja dito,

que possa o choro apenas apagar

e que tudo refazer depois consigas,

após o alívio de teu peito aflito,

sem que o papiro precises de rasgar...

CÍRCULO IRRESISTÍVEL I (28 NOV 11)

Não acredito no inferno. Há, porém,

os que nele acreditam. E são muitos

os que receiam que, “ao virar presuntos”,

cozinharão nas chamas que contém...

Eu cá não dou valor a tais assuntos:

ou Deus existe e seu valor sustém

o universo inteiro e faz o bem

e a Ele um dia seremos todos juntos

ou o rei deste mundo é o Adversário,

pela mente dos homens concebido,

para punir seus próprios inimigos...

Mas não me atolo nesse sonho multifário,

pelo inconsciente coletivo percebido

e deixo o Inferno a quem busca castigos...

CÍRCULO IRRESISTIVEL II

Mas todos temos um negro companheiro,

que nos incita a praticar o mal

ou, pelo menos, aquilo que a moral

considera ser um crime bem certeiro.

Decerto é relativo e até grosseiro

este conceito da ética. Afinal,

já foi tido como mérito. E triunfal,

em outras sociedades a que esgueiro

meus pensamentos. Olhe o que condenamos:

o assassinato é louvado em cada guerra,

botim e saques eram coisas corriqueiras,

prostituição foi sagrada muitos anos,

queimavam as crianças noutra terra;

canibalismo praticava-se nas feiras!...

CÍRCULO IRRESISTÍVEL III

Em outros povos, costumes homossexuais

eram tidos como perfeitamente naturais,

durante as guerras e noutros o adultério

ainda se pune com o apedrejamento.

Outros não tinham compulsão ou sentimento

de os velhos apressar ao cemitério,

ao lhes negar alimento. E muitos pais

expunham as crianças aos temporais.

Existem povos que louvam ao ladrão,

enquanto a lei de outros corta a mão

de quem é pego na prática do furto

e enquanto alguns massacram os seus loucos,

às suas súplicas fazendo ouvidos moucos,

na Rússia eram sagrados em seu surto.

CÍRCULO IRRESISTÍVEL IV

Entre alguns povos, os monges são ascetas

e em outros, se empanturram nos conventos;

uns são ao amor feminino desatentos,

condenam-no outros à morte pelas setas;

uns punem o assassínio em diretas

execuções. Outros aceitam pagamentos...

As drogas são sagradas em momentos,

noutros recebem punições completas...

Cada cabeça, uma sentença, é o que se diz

e cada povo tem seu código de ética

e tais costumes vão mudando com os anos,

conforme aquilo que a sociedade quis,

tal qual variam seus ideais de estética

e seus castigos se tornam mais humanos.

CÍRCULO IRRESISTIVEL V

E que nos diz que o uso da piedade

é mais correto que a cruel vingança?

Que o monopólio do castigo alcança

o governo, em total exclusividade?

E quem nos diz que as igrejas têm verdade,

mesmo quando contrariam a esperança?

À pretensa inocência da criança,

deixada a si, um puro egoísmo invade.

A maioria dos códigos sociais

se destinam a proteger a sociedade

e não ao indivíduo rebelado;

e foram sendo inscritos nos anais,

com consequências de muita iniquidade,

só porque alguém foi no passado castigado.

CÍRCULO IRRESISTÍVEL VI

Porém mais forte é a reprovação

dessa lei não-escrita do social,

que condena seus membros, afinal,

pela quebra do que aceita por padrão.

É esse círculo irresistível a punição

que te obriga a aceitar, por bem ou mal,

o que pareça para ti inatural

e que, em figura, te decepa a mão.

E é por isso que, em assomos de rancor,

nós mandamos os outros para o inferno,

para que sofram lá maior castigo

e o negro companheiro é o Tentador,

que justifica o nosso impulso interno

de rebelião contra o social abrigo.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 14/04/2012
Código do texto: T3611568
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