BEM A TUA CARA...

... Ela subiu no ônibus. Frio na barriga, coração na mão. Coração.

Sentou-se na janela, observou o céu ainda escuro. Escuro. Sentia sua falta.

Carros e pessoas passando em uma cadência morosa.

Nenhum ar de primavera, sua estação. Sensação

De frio e de cansaço. Vazio.

Um rapaz a olha e sorri. Não é você.

Todos os passageiros parecem partilhar de sua solidão. Paixão

Que cegava e dilacerava; cortava; rasgava; doía. Sentir falta,

Já não sente. Resta apenas o oco, o nada. Bem do teu estilo,

Me diz que nunca vai sumir e some, na cara-dura. Bem a tua cara, aliás,

Cara de pilantra, cara de sujo, cara de falso, de asco, de nojo, de tudo. Meu tudo.

Onze anos têm quantos segundos?

O ônibus se arrasta; para. Para de novo, para quando queres que ande, que voe...

Que deixe pra trás os beijos, os medos, as dores, os cheiros. Nós.

Que nos deixe pra trás.

Entra na estrada de terra. Lá onde eu me enterro, me afundo, sumo.

Levanta poeira. Pó que me seca, me engasga, me embola a garganta.

A janta tá servida; teu prato.

Digo teu nome, em meio à neblina de areia.

Homem não chora, tu me diz.

Quem nasceu pra lutar, só faz lutar, tu me diz.

Um soldado não questiona, executa, tu me diz.

Então vai.

Vai pra tua guerra de merda, com teus amigos de merda, teus ideais de merda.

Tua vida de merda. Tua merda.

Uma merda para a qual me puxasse, e agora não quer me soltar.

Penso na nossa infância. Nos nossos carinhos, na tua atenção...

Nos teus cuidados, nos teus ciúmes, nas tuas flores...

Nos teus beliscões, nas tuas piadas, nas tuas provocações...

No teu sorriso, no teu deboche...

Tu, um fantoche disfarçado e distorcido de ti.

Que belo futuro tu nos arranjou.

Três metros por um e cinquenta.

Não me parece grande coisa, pra quem iria conquistar o mundo...

O ônibus ganha velocidade, está se aproximando.

Ela se ajeita no banco, ansiosa, nervosa

Quem está ao seu lado estranha, ela percebe, mas logo esquece

Esquece também a rotina, o patrão chato, a gente chata...

Esquece o cachorro, o sobrinho, o Big Brother, a mãe, a vida, o mundo...

Esquece de tudo, pois só o que vale é você.

Estar perto de você. Passar perto de você. Talvez, ver você. Imaginar você.

E assim, por três segundos

– Três segundinhos de nada,

Três segundinhos de coisa nenhuma –

Tê-lo. Sê-lo.

O sol que vem de longe bate nos olhos

Ela sabe que está chegando

Acorda, todo dia, bem mais cedo,

E chega na parada bem mais cedo,

Tudo pra sentar na janela, no lado direito,

Daquele ônibus lento, daquela vida maldita, daquele calor dos infernos

Daquele inferno.

Tudo por você.

Sempre por você.

Enxerga o prédio, ao longe.

O coração pula, salta, decola, voa,

As mãos tremem, sente frio, sente calor, a testa sua, os olhos doem

O sol na cara que não aquece, apesar do calor.

Ao seu lado, o velho questiona se a mocinha se sente bem

Cuida da tua vida, não enche o meu saco, e coisas assim.

O prédio fica maior, ela torce pra alguém descer ali

São cinco segundos a mais, pelo amor de Deus, alguém desce!

Por favor, Senhor, não Te peço mais nada, só que alguém levante e puxe a cordinha!

Troco isso pela minha vida, por tudo que tenho e o que não tenho!

Uma velha levanta, puxa a corda, a moça sorri.

Um sorriso ensandecido, enlouquecido, assustador.

Felicidade vaga, nula, zero.

O ônibus reduz a velocidade, vai parando, lentamente

Ela aguça os olhos, força, onde está, onde está!?

- Penitenciária estadual de Rio Grande!

Ela encontra, enfim.

E não faz mais nada, naqueles oito míseros segundos,

Que pousar os olhos naquela toalha branca, encardida de sujeira,

Com um coração torto, mal desenhado, mal pintado de vermelho

Estendida sob uma janelinha minúscula, lotada de grades.

Lá está ele. Lá está o meu amor.

...

O ônibus logo se afasta, com essa pressa da porra,

Com essa gente maldita,

Pra que correr desse jeito?

Pra que essa rapidez?

Não, não dá mais pra enxergar.

Nem virando o pescoço todo pra trás.

Que amanhã chegue logo...

É só o que peço, meu Deus, e nunca mais peço nada!

Troco isso pela minha vida, por tudo que tenho e o que não tenho...

É bem a tua cara.

Meu amor, não sei quanto tempo mais

Suportarei viver nessa prisão.