O cavaleiro Elisabetano

Somente a luz se move lentamente,

Enquanto o dia passa quase despercebido.

Os olhos piscam ás vezes, timidamente,

Mas o corpo permanece inerte,

Como que morto, mas em respiração contida,

Resistindo muito bravamente

À passagem das horas e ao cheiro das tintas.

Suas pernas ligeiramente afastadas,

Sustentam o tronco sobre a cadeira,

Tendo aos pés o tecido cinza,

E numa das mãos a arma de galanteria.

O brinco de pérola em uma das orelhas,

Os cabelos de fogo em todas as direções,

Os lábios desenhados pela barba crescente,

São o corpo de um homem semi-vivo,

Negando a vida em seus músculos congelados.

Se pudesse dizer da grande dor que sente,

Diria do corpo que não mais lhe pertence,

Por horas postado em retorcido formato,

Para a visão do arquiteto à sua frente.

Do outro lado do mundo que é limitado por paredes,

Eu sentado descrevo numa tela de brancura suspeita,

Primeiro as linhas do rosto de excentricidade triangular,

Com meu carvão que inventa um pouco a perspectiva,

Mas que não mente nem o brilho fugidio de seu olhar.

Depois descreve o corpo que carrega os tecidos azuis,

Que mesmo se fossem tramas do mais ordinário farrapo,

Ainda denunciariam a nobreza do escritor apaixonado.

E por ser a escrita calada ante o desenho que descreve,

É que morre aos pés do cavalheiro, junto ao tecido cinza,

O coração pulsante de uma página de vinte e poucos anos.

Sobra aquele que agora é rascunho numa tela iluminada

Mais pela febril dúvida do que pela luz do dia.

Quando descrito tudo o que é certo nessa sala da escrita,

Cai aos meus pés o bastão que desenhou seu corpo de artista.

Não mais crendo ser necessário outro coração para entender,

Será esta a pintura que descreverá minha ira e morte.

Temo a saída do sol pela janela sem cortinas e sem horizonte,

Que agora repousa os raios sobre a ruiva indomada cabeleira.

E com o vermelho do meu terrível sangue degenerado,

Construo a trama e o urdume sobre sua primeira cabeça.

Com o azul roubado de alguma tela de Caravaggio,

Arremesso seu corpo na mais profunda escuridão do canto,

Fazendo ver com os pincéis, embora muito parcamente,

O reflexo das pedras soltas que brilham em seu peito.

O cinza do tecido aos seus pés em movimentos opostos,

É o cinza das almas carbonizadas no inferno.

E quase ouço seus gritos lamentosos na memória drapeada,

E nos seus pequenos e mal ajambrados bordados.

E surge o rosados de sua carne de feridas mal ocultadas,

Mesmo estática ainda assim pulsante como a música não lapidada,

Presa na pedra e como a pedra uma verdade desprovida de fé.

Eu exausto, meus dedos dobrados, olhos guardando os prantos,

Ainda tenho a cor certa, para seus olhos que me perseguem.

O corpo não sabe mas eu vejo, mesmo com o sol indo embora,

Que me observa por sobre o cavalete onde guardei meu mundo,

Minhas mãos trêmulas que congelam seu rosto na eternidade.

E com o castanho que respinga de meus pincéis antigos,

Ilumino seu rosto elisabetano de cavaleiro errante e sem pátria,

Com dois olhos que me perfuram a carne como pregos.

São duas formas de não estar ali e mesmo assim estando,

Me acusam e me amam como o poema mais terrível e sádico,

Como dois projéteis disparados no firmamento,

Que me sangram, me matam, me revivem e me calam.

Sol desaparecido e nem me dou conta dessa lua estranha,

A passear pelo céu como uma demente perseguidora.

E minha pintura repousa em meus olhos agora inutilizados.

Move-se o corpo, que qualquer coisa fala, com sua boca perfeita.

Eu não ouço porque nada mais traz à luz minha sanidade.

Contemplo apenas seu corpo que repousa em três dimensões.

A dimensão de uma tela que foi branca e agora é desejo,

A dimensão do meu quarto, coberto de paixões e tintas excêntricas,

E a dimensão do meu peito cravado pelos olhos apaixonados

De uma cavaleiro sem nome que nem esteve aqui

Mas que sendo do futuro, surgiu como o sopro do passado.