A FACA DA PARTILHA / COROMANDEL

A FACA DA PARTILHA I (22 OUT 11)

Quando os mortos se vão, nós os guardamos

nas profundezas do rosto, totalmente.

Sua face no ataúde é indiferente,

pois são compostos daquilo que lembramos.

Dentro de nós suas vidas conservamos,

até o ponto que deles lembra a mente.

Muito mais do que nos traz nosso consciente,

em seu conjunto inteiro os recordamos.

Com tudo quanto já pensamos deles,

com tudo quanto em vida nos fizeram,

com tudo quanto a eles transmitimos,

com tudo o que de nós gravamos neles,

o que lhes demos e quanto eles nos deram

e que por trás do olhar reconstituímos...

A FACA DA PARTILHA II´

Há muito mais guardado nessa imagem:

os tons da voz, os cheiros, os suores,

esses momentos de ríspidos rancores,

essas suspeitas de rápida passagem...

Esse mapa que guardamos da paisagem,

bem diferente talvez de agrimensores

ou sacerdotes de místicos pendores,

ou que médicos levariam na bagagem...

Que essas lembranças não são os seus prontuários,

nem os registros de transientes confissões,

nem tampouco a polidez de atos sociais.

Nossas lembranças são reais sacrários,

formados totalmente de ilusões,

até opostas a suas vivências naturais...

A FACA DA PARTILHA III

Mas é certo que temos esses nexos,

envoltos em mortalhas coerentes,

nossas lembranças reais indiferentes,

beijada apenas a sombra dos amplexos...

Mas nem por isso são fantasmas desconexos:

para nós são resguardos permanentes

de quanto nós atribuímos a essas gentes,

nesse baraço dos meandros mais complexos...

Porque neles envolvemos emoções

que partilhamos em momentos transitórios

ou que nunca realmente foram deles,

que só existiram em nossas intenções

e que agora se tornaram compulsórios,

tais quais as fotos dos rostos que congeles.

A FACA DA PARTILHA IV

Também consigo eles levaram, parcialmente,

esses conceitos que de nós fizeram,

esses reflexos da luz que nos beberam

seus olhos vivos, de forma permanente...

São tais coisas adquiridas totalmente,

que a nós de fato nunca pertenceram,

mas que como algo de nós reconheceram

e tomaram de nós, perpetuamente...

Essas visões mantidas nos olhares,

esses sons captados pelo ouvido,

esses toques recolhidos pelos dedos,

gostos e cheiros de tantos degustares

e todo e cada sentimento percebido,

que mesmo para nós foram segredos...

A FACA DA PARTILHA V

Essas imagens já levaram os que foram

e nunca mais poderão nos devolver.

De forma idêntica, lhes roubamos sem querer

cem mil imagens que de fato não vigoram.

Algumas percepções os olhos douram,

outras fazemos em malícia se envolver.

Mentem os olhos que temos para ver,

mentem as mágoas que os corações exploram.

Não foram eles, mas o que deles sentimos,

não foram suas palavras que escutamos,

porém o reverbero dos ouvidos...

Pois mais guardamos do que nos iludimos:

do que queríamos somente nos lembramos,

mais que os momentos de fato convividos.

A FACA DA PARTILHA VI

É esse o efeito da faca da partilha:

por mais sinceros que no peito nós sejamos,

por maior bem aos queridos atribuamos,

por maior mal nos rancores que se empilha,

nossa lembrança da falsidade é filha

e esses mortos que dentro em nós guardamos,

talvez nós nem sequer reconheçamos,

caso encontremos de novo em nossa trilha.

Talvez os víssemos despidos da beleza,

do generoso sorrir do rosto amigo,

de que queremos guardar longos instantes,

e por tais cortes fossem tomados de surpresa,

se volvessem a buscar em nós abrigo,

para deixarem de ser almas errantes...

COROMANDEL I (23 out ll)

Chegou o momento das recordações.

Vejo as nuvens em pilhas de algodão;

durante a noite, almofadas de tição,

pouco me resta a lembrar dessas tensões.

Quente viagem, longa e sem paixões,

assentados de permeio à multidão,

adormecida do aeroplano no salão,

enquanto eu cato piolhos de ilusões...

Atrás de mim, alguém teve um ataque,

provocado pelo excesso de calor:

por um momento, quase o invejei...

Meu coração batendo, em atabaque,

pela loucura desse condicionador,

mas vi a ironia e então me controlei...

COROMANDEL II

À minha frente, uma mulher trazia

uma criança de berço, que chorava

e meus farrapos de sono atrapalhava,

enquanto o povo a meu redor dormia...

E nos momentos em que um pouco conseguia,

a comissária vinha e atrapalhava,

com refeições que eu nem sequer buscava,

ou atenções a que recusar eu preferia...

Também à frente, uma pequena tela

mostrava meu percurso digital,

alívio único para meu desconforto...

Os contra-alíseos assoprando feia vela

nas costas da cadeira, que era, afinal,

imagem falsa de meu espaço morto...

COROMANDEL III

Até que enfim se completou essa viagem

e foi a busca intensa das bagagens.

Se aqui for pobre a rima das imagens,

mais pobre foi o meu rito de passagem...

Os aeroportos decretavam avassalagem,

nos corredores infinitos, com mensagens

contraditórias ao longe, mas sem pajens

que nos mostrassem os pontos de triagem.

Não era a Meca, mas foi peregrinação

pelos caminhos sem fim e indiferentes,

até um trem tivemos de tomar!...

Sem que mostrasse real indicação,

acompanhando ao terminal outros presentes

talvez diverso destino a demandar...

COROMANDEL IV

Num descaso total do passageiro,

esse imenso aeroporto tumular,

a altura de DeGaulle a superar,

pobres formigas encarando sobranceiro...

Até chegar à esteira, em que ligeiro,

ficavam nossas malas a jogar,

pouco ligando a seu danificar

e novamente o calor vem, por inteiro...

E me ensopa a camiseta e a camisa,

enquanto puxo malas por rodinhas,

certamente melhor que antigas alças...

Minha própria mala pequena em nada pisa,

trocada por essas malas de rainhas,

a imaginar, quiçá, recepções falsas...

COROMANDEL V

O tempo dos poetas é diverso

desse tempo que entretém gente comum.

É diferente também do tempo algum:

é o brevelongo tempo de meu verso.

Portanto, o recordar é mais disperso,

pois na viagem, não escrevi nenhum

e se os dato agora, é que o assun-

to realmente corresponde ao dia terso,

em que corremos pelos corredores,

que para isso servem, certamente,

no falso mármore a que meu pé se apega,

nessa busca de pelourinhos constritores,

alagado de suor, incontinenti,

mas que posso fazer, se a noite é cega?

COROMANDEL VI

Fico a pensar em viagens mais antigas,

esses veleiros indo até Coromandel,

sem ar condicionado e sem quartel,

para banhos, abluções e outras intrigas...

Contudo, o vento lhes soprava doce mel

e embora as ondas balançassem inimigas,

as tábuas do convés em breve amigas

se tornavam, mesmo a água sendo fel...

E tantas coisas ouvi desse passado,

sei quais imagens posso hoje esperar,

que a tais destinos místicos nem parto...

Bem confortável em meu casulo alado,

que me permite à imaginação voar,

nesta "viagem à roda de meu quarto"...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 10/12/2011
Código do texto: T3382475
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