LOUÇA MARROQUINA / FIOS DE ESPERA
LOUÇA MARROQUINA I (2009)
Mulher tão próxima e tão inatingível,
que se entrega a tal ponto e não se entrega,
revoluteia em torno e não se apega,
mudança após mudança inexaurível...
Difícil compreender a intransponível
muralha de sua alma, que me cega,
dançarina no jardim, nunca sossega
e só no seu mudar é compreensível.
Talvez seja um espelho em mil facetas,
talvez sejam mil almas num semblante,
talvez mil confissões, vagas, secretas...
Talvez mil personagens num proscênio,
talvez somente uma alma delirante,
que já persigo há mais do que um milênio...
LOUÇA MARROQUINA II (20 OUT 11)
Às vezes penso ser até realidade
esta viagem por reencarnações,
em que se prendem certos corações,
em busca longa através da eternidade.
E me contemplo em reais perseguições
dessa mulher, empós a sua vaidade,
sempre movida por novel curiosidade,
sempre sua alma pejada de ilusões...
Sem me cansar, ao longo das idades,
enquanto ela me lança o pessimismo
e contamina tantos meus passeios,
nessa homilia de música de frades,
que repetida, desperta-lhe o otimismo
e me permite o gosto de seus seios...
LOUÇA MARROQUINA III
Ela me lembra a louça de Agadir,
essa mistura de ocre e terracota,
com traços de azinhavre e da ignota
multidão de papilas a assistir...
Enquanto os pés giram sempre a mesma rota,
que vai a ponto algum em seu urdir,
mas ronda sempre, em vago perquirir
de julgamentos da mais estranha frota...
Porque ela pensa e esquece seu entorno
e os pensamentos não vão a parte alguma,
enquanto os olhos para dentro fitam...
Da mesma forma que do oleiro o torno,
sem que sair do lugar jamais presuma,
fitando os rostos que em sua mente habitam.
LOUÇA MARROQUINA IV
E que fazer então com a marroquina
louça corrente de feitio artesanal,
que não provoca o bem, nem traça o mal,
não é grosseira, mas tampouco é fina.
Voltada para si, pouco se inclina
a contemplar minha ânsia material.
Minha atenção aceita em natural
tributo e preito que a ela se destina.
E permaneço, geração a geração,
a me encontrar com ela, erroneamente,
sempre buscando e sem poder achar,
vendo nos olhos de imensa multidão
os traços desse amor, eternamente,
sem que um igual amor me possa dar.
LOUÇA MARROQUINA V
Pois tem ciúmes de seus pensamentos
e dos amigos e amigas que cultiva.
Só me permite que a seu lado viva,
sem partilhar de seus encantamentos.
E me repele de seus emolumentos
quando uma amiga de mim se cativa
e se torna, de repente, mais esquiva,
no recusar-se a meus pressentimentos.
E não sei qual a razão da insegurança
que a impele assim a repelir
e a seu mundo interior não partilhar.
Tal como refugiada em tal mudança,
só me repele para mais junto impelir,
até deixar-se novamente conquistar.
LOUÇA MARROQUINA VI
São estranhas essas bilhas marroquinas,
essa aspereza a ocultar sua água fria,
esse impelir com que me repelia
essa inocência de armadilhas femininas.
Ao repelir, atrair-me é que queria,
a uma ciranda de atenções contínuas,
nesses caprichos insensíveis de meninas,
nesse negar-se em que tudo permitia.
Talvez seja, realmente, uma miragem,
uma nuvem a que amei no meu passado
e que ainda busco revestir de areia...
Mas da pérfida rainha ainda sou pajem
e se me mostra um sorriso enamorado,
minhalma inteira de novo se incendeia...
FIOS DE ESPERA I (10 OUT 11)
É com a vagina que a mulher caminha.
Quando se torna infértil, a ledice
se evola bem depressa e sua velhice
rapidamente dela se avizinha.
Então, ela repete a ladainha
que tantas vezes no passado ouviu-se:
tenta passar por conselheira e diz-se
conhecedora de quanto a vida tinha.
Mas não consegue resistir à realidade:
seu ventre seco não sustenta fés,
seu corpo aos poucos consumido por voragem.
Mas nem todas se rendem, na verdade,
e como admiro essa que arrasta os pés,
ainda enfrentando a vida com coragem!
FIOS DE ESPERA II
Quando seu corpo perdeu a utilidade
para a reprodução, é bem cruel
nossa mãe Natureza, cujo fel
fácil descarta essa terceira idade...
Hoje repõe-se sua hormonalidade,
há cosméticos e maquiagens a granel,
exercícios e dietas em farnel,
vasto arsenal contra a mortalidade.
Mas algo morre nesse corpo vivo
quando se pensa não ser mais atraente:
duro e pesado é o fardo dessa carga.
E a juventude falsa sofre o crivo
dessa batalha de recuo permanente
pelo desejo dessa flor amarga.
FIOS DE ESPERA III
Para o homem, é mais gentil a Natureza,
porque Fauna é uma deusa feminina.
Conserva os velhos a quem ainda fascina,
enquanto rouba das mulheres a beleza.
Pode o homem replicar-se, com certeza,
encontrando excitação mais fescenina
e a Natureza o ampara nessa sina
e lhe sorri com a maior delicadeza...
Como o pólen que se espalha em multidões
o sêmen masculino é produzido
muito depois que os óvulos cessaram
e se intercala com novas gerações,
abre caminho com seu pênis erguido,
muito mais tempo que as esposas esperaram.
FIOS DE ESPERA IV
É de pensar que a Natureza é injusta,
conservando por mais tempo o masculino,
que atribui até mesmo ao ser divino
a masculinidade mais vetusta...
Mas será a monogamia coisa justa?
Após a menopausa, o feminino
perde o desejo sexual e, em desatino,
não reconhece ao marido o quanto custa
a abstinência, conservando embora
aceso ainda seu ímpeto sexual:
não quer fazer e tampouco quer que faça.
E todas suas fraquezas ela explora,
inventando a andropausa artificial,
em seu temor de que o marido saia à caça...
FIOS DE ESPERA V
E caminhando com o ventre desnutrido,
quer que o pênis suspenda seu andar.
Quantos problemas isto irá causar
e quanto lar assim é destruído!...
E por ter o seu alívio proibido,
à decadência o marido irá forçar.
Não é a velhice que interrompe o inseminar,
mas é sua falta que o torna ressequido.
As flores murcham sem fecundação
e o pólen turbilhona pelos ares:
é perdulário o que a Natureza faz.
Há fios de espera em cada brotação
e vejo as flores roxas tumulares
enquanto piso nos jacarandás.
FIOS DE ESPERA VI
São macilentos esses fios de espera,
ossos manchados pela osteoporose,
tendões puídos pela ausência da meiose,
faces marcadas por mil tons de cera...
Se o fio do sêmen masculino gera,
o fio umbilical já não mais cose,
os fios de sangue fluem em menor dose:
os fios da vida não são como se queira...
Mas é assim a condição humana,
atrabiliária a condição social,
são fios de espera os enleios da saúde.
Mas o passo da velha o chão espana
e ela se esforça, em martírio consensual,
enquanto, passo a passo, a morte a ilude...