PAS DE DEUX / FARRAPOS DO ARMAGEDDON

PAS DE DEUX I (2009)

A pele é doce quando a palma escorre

e sob os dedos foge, num relance.

os poros se me furtam ao alcance

e o suor ao redor dos pelos morre.

a carne é dura quando a pele corre

e como digladia em seu romance!

carne na carne, os pelos em retrance,

pele na pele, até que o suor jorre!

são os lises e deslizes dessa vida,

nesses momentos em que a vida mais desliza

e escorre a DERME pela palma lisa.

são os corres e os escorres sem guarida,

nesses momentos em que a pele mais escorre

até que a palma sobre a pele morre.

pas de deux ii (24 set 11)

a pele sob os dedos, em macia

percepção da polpa sobre a vida.

as unhas correm sem causar ferida,

as digitais esvoaçam em magia.

a pele sob os dedos corre o dia

dessa carne de sonho entretecida.

como é macia a carne assim tangida!

como é perpétua a luz que assim tremia!

são as lisuras das faces da maçã,

são as rosas do ventre, em nostalgia,

são as dobras da pele em cancioneiro!

são os incríveis botões dessa romã,

que estremecem e palpitam harmonia,

enquanto os dedos os apalpam bem ligeiro.

pas de deux iii

a pele é dura e não pálida ou fria,

mas cálida, harmoniosa e transparente.

é como fora quase translucente,

morno e tranquilo acorde de harmonia.

e no escorrer dos dedos, quase cria

que essa pele correspondesse quente,

que fosse ela a tatear-me de impaciente,

acariciando a mão que a percorria.

ah, pele que toquei, veludo leve,

pelos ombros e pescoço, carne mansa,

dócil ao tato, pele de alforria,

sutil contato, como língua breve,

a pele é CÂNFORa que minha palma alcança

e a palma a harpa que tal pele tangia!

PAS DE DEUX IV

A PELE É DOCE NO SEU DOCE SAL,

ENQUANTO OS DEDOS A MORDEM COMO DOCE.

aH, MARAVILHA QUE TAL PELE FOSSE

COMPANHEIRA PARA TODO O BEM E O MAL!

A PELE TRAZ SEU SAL EM DOCE ERVAL,

REGADA PELO ORVALHO, QUE ME TROUXE

ESSE SUOR DE ANIS, SUOR DE POSSE,

QUE ME CONTROLA E LEVA EM SEU CAUDAL!

AH, PELE DOCE E PLENA DE SEGREDOS,

PELE DE AMORA EM CANTO E MADRIGAL,

PELE DAS FACES RÓSEAS, PELE CLARA,

PELO QUE SUGA OS DERRADEIROS MEDOS

E QUE ME ENGLOBA EM DOBRA DE EMBORNAL,

PELO AGRIDOCE EM PELE DOCE E AMARA!...

PAS DE DEUX V

PELA PONTA DOS DEDOS É SALGADA

ESTA PELE QUE ME TOCA DE ARREPIO,

PELE DO VENTRE QUE CONDUZ AO CIO,

PELE DAS COSTAS, ENTRE ASAS DE FADA.

PELE DE CARNE FÊMEA CONSAGRADA,

NO SEU DÚTIL ARDOR, PELE DE RIO,

ARREPIADOS SEUS PELOS, NÃO DE FRIO,

MAS DA TREMURA POR PALMA PROVOCADA.

PELE QUE ESCORRE DO PESCOÇO AO SEIO,

PELE DE ORQUÍDEA E CÁSSIA PERFUMADA,

AH, PELE TUA, PELE MINHA ANSIADA...

SUOR MACIO QUE ME CONDUZ AO MEIO

DA PELE MAIS VERMELHA DA MORADA,

DA MINA DE RUBIS DE MEU ANSEIO!...

PAS DE DEUX VI

E MEUS DEDOS QUE EXECUTAM ESTA DANÇA

SÃO BAILARINOS SOBRE O PALCO ARMADO,

O CORO TENTADOR DE MEU PECADO,

A INTRODUZIR, EM RASGO DE ESPERANÇA,

O OUTRO DANÇARINO, QUE NÃO CANSA,

MAS SE MOVE PARA O AMOR, APRESSURADO,

PARA A CONCHA DO ARDOR DESCOMPASSADO,

PARA AS FIBRAS SUTIS DE SUA BONANÇA!...

E QUANDO SUOR É AZEITE DE DELÍRIO,

EM QUE CADA MOVIMENTO É EXULTAÇÃO,

QUANDO É A PELE POR PELE DEVORADA,

QUE SEJA O PAS-DE-DEUX FUGAZ MARTÍRIO,

NESSE FLUIR EM MÚTUA DIREÇÃO,

NO AMOR DA PELE POR PELE PENETRADA.

FARRAPOS DO ARMAGEDDON I (26 SET 11)

Corre esse rio vermelho como a vida,

por catadupas brancas percorrido,

por sobre rochas lisas conduzido,

nenhuma forma das margens refletida.

Nem o azul nem as penugens têm guarida.

Só por faixas mais escuras repartido,

castanho, negro e de laranja colorido,

qual se rasgasse na Terra uma ferida.

E nada espelha dessa vegetação

que lhe cresce na barranca, indiferente,

sem demonstrar particular exuberância,

nem qualquer tipo de raquitização,

lanhando o solo desde sua nascente,

qual metal derretido em abundância.

FARRAPOS DO ARMAGEDDON II

Não é possível deixar de comparar

as águas desse rio, fantasmagóricas,

com tantas descrições já mais históricas,

sobre hecatombes cruéis do massacrar.

Pois tanta vez já se escutou narrar

dos rios de sangue, imagens parabólicas,

das ruas que o vertiam, tristes cólicas,

quando as muralhas acabavam de tombar.

Ou quando houve lutas intestinas,

ou o genocídio de pobres minorias,

quase sempre devido à religião.

Todas estas breves fontes pequeninas,

bem mais metáforas que nos livros lias,

quando encaradas em tal comparação.

FARRAPOS DO ARMAGEDDON III

Já houve quem falasse desse rio

que era o sangue de Cristo derramado,

buscando nesse afã cada pecado

lavar dos homens em sagrado brio.

Que do tronco da cruz somente um fio

escorreu para o solo ressecado.

Muito mais sangue já fora respingado

sob os golpes da vergasta, em feroz cio.

Ou nas ruelas por onde esse Jesus,

a percorrer a Via Dolorosa,

marcara as pedras de Jerusalém,

tombado sob o peso dessa cruz,

esgotada toda a linfa vigorosa,

após angústias e Seu jejum também.

FARRAPOS DO ARMAGEDDON IV

E afirmaram também, supersticiosos,

quando esse rio primeiro descobriram,

que essas águas para além fluíam:

lavar do Inferno os antros perniciosos.

Sangue feito dos perdões os mais ditosos,

purificando a todos os que o viram,

as águas bentas com que bênçãos tiram,

sem se atreverem, mesmo os mais sequiosos,

a beber dessas ondas encarnadas,

como a próprio encarnação da Divindade,

em seu marulho de hossana e de coral.

Como corais suas marolas vermelhadas,

como sangue menstrual da humanidade,

igual ao sangue em cada parto natural.

FARRAPOS DO ARMAGEDDON V

Outros disseram ser bem o contrário:

que essas águas brotavam lá do Inferno,

coloridas de pecado quase eterno:

eram semente do Demônio perdulário!

Destinadas a criar cruel fadário

para os homens a viver no mundo externo.

Quem as bebesse para seu interno

seria corroído e então gregário

se tornaria dos rebanhos desolados

que percorrem os planaltos eriçados,

em que a tortura chega até na brisa!

Porque tais águas eram maré da morte,

a enferrujar os pés de quem as pisa

e a demarcá-los para a negra sorte...

FARRAPOS DO ARMAGEDDON VI

Mas é claro, tudo isso são histórias,

nada mais que Armageddon esfarrapado.

Esse rio que nos flui, tão encarnado,

traz do ferro diluídas suas escórias.

Não tem de Cristo as sempiternas glórias,

nem dos diabos a marca do pecado.

Só traz consigo o gosto acidulado

desses minérios, sem fracassos ou vitórias.

Muito mais forte é o rio que nos percorre,

desde os albores iniciais da humanidade:

somos vermelhos, qualquer que seja a pele.

É o mesmo fluxo que de nós também escorre,

na descendência e na posteridade,

no rubro rio que a raça humana impele!

William Lagos
Enviado por William Lagos em 08/12/2011
Código do texto: T3377503
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