VEIAS TORTAS / FUMAÇA DE TINTA
VEIAS TORTAS I (JAN 2009)
Tu nunca me feriste, mas tristeza
muita vez derramaste sobre mim.
Como eu queria que não fosse assim,
mas que pudesse partilhar beleza,
lado a lado contigo, na certeza
de que amas o bem que eu amo, enfim,
que me trazes lealdade só pra mim
e não ter perdes em rumos de impureza.
Porque pura, para mim, é quem me ama
e busca a mim somente, não importa
o quanto alhures faça, se for minha.
É sua presença que minhalma inflama
e a força desse ardor tudo mais corta,
se partilho do fulgor de tal rainha.
VEIAS TORTAS II (21 set 11)
Amor que é amor, é amor feito de veias,
esse amor que o corpo inteiro nos percorre,
que em cada capilar e artéria escorre
e que partilha do sonho em que mais creias.
Amor que é amor, é o perpassar das teias
que conformam o líquido que jorre
no encéfalo e na espinha, sem que borre
com aglutinações as suas cadeias.
Amor que é amor, aninha-se na derme,
logo abaixo da pele mais visível:
leve se expande em seu revestimento.
Amor que é amor, aloja-se no cerne,
sem qualquer exposição mais perecível
que lhe possa desfazer o encantamento.
VEIAS TORTAS III
Contudo, teu amor de encruzilhada
não seguiu sempre a linha mais direta.
Deixou de lado minha ilusão completa,
foi por desvios e se perdeu no nada.
Foi por desvãos de busca mais airada
e se enleou em farsas de opereta.
Deixou-se seduzir por cada treta:
fintas de bruxa e não condão de fada.
Teu amor se perdeu por veias tortas,
que se espraiavam por arteríolas mil,
pelas quais não conseguiu atravessar.
Coagulou-se, quais esperanças mortas,
nunca atingiu o ponto mais sutil
que o sangue inteiro pudesse encompassar.
VEIAS TORTAS IV
Porque há amor e amor nessa tortura.
Às vezes, é precisa certa osmose
para cruzar as membranas, dose a dose
e emergir em sua plena formosura.
Pois há amor que não tem lágrima pura,
somente fontes do orgulho que se goze,
nesse amor de aparência e total pose,
amor de palco ante a plateia escura...
E se apaga no desvão dos bastidores,
tão logo perca as luzes da ribalta,
esse amor que só se prende ao coração
e não percorre do organismo os corredores,
mas que provado, se demonstra em falta
e se dissipa nas névoas da emoção.
VEIAS TORTAS V
E por que me deveria queixar,
quando me dás o quanto podes dar,
só porque eu almejava a estranha luz
que minha mente acrisola e me seduz?
Só porque eu queria algo intangível,
quimera pura e sonho imperecível,
alguém que visse com meus próprios olhos
e que me percorresse os mil refolhos?
Alguém que compartisse de minhas veias,
que me nadasse pela circulação
e se instalasse nas redes minhas neurais?
E que me recebesse nas mil teias
de sua completa configuração,
entrelaçados totalmente no jamais...?
VEIAS TORTAS VI
Assim, não me feriste, realmente:
fui eu que me feri, por te esperar.
Quis de ti o que não tinhas para dar
e nada recebi, naturalmente.
O que me deste foi ouro, inteiramente:
todo o prazer que se podia almejar.
Mas em minhas veias nunca te vi nadar:
não foi o amor por que ansiava tolamente.
E somos assim dois e não um só.
Eu te trato com carinho e sou paciente.
Tu me atendes com maior complexidade.
E tendo tudo, ainda sou pobre como Jó,
embora conte minhas bênçãos diariamente,
nesse arremedo do fulgor da eternidade.
FUMAÇA DE TINTA I (2009)
Na ronda dos medíocres minha parte
é limitada assaz. Sou rejeitado,
pois veem em mim a que ponto superado
é o seu jeito de entender... pela minha arte.
Não é que os busque superar destarte.
É assim que sou. Modelos espalhado
eu tenho pela vida e não copiado,
só refletindo até que o olhar se enfarte.
Porém não me compreendem, que elementos
nunca tiveram para avaliação
e se limitam a jogos mais vulgares...
E que fazer, quando os acontecimentos
me levam a mostrar superação,
sem que eu inveje sentar-me em seus lugares?
FUMAÇA DE TINTA II (22 SET 11)
Na ronda dos medíocres, minha fonte
está coberta de roxa poluição.
Se esguicho apenas por lavar-me a mão,
jogam críticas e despeito num pesponte.
Procuram recobri-la com uma ponte
de falso arco-íris, ferrugem de ilusão,
com cascas podres a roer cada mourão,
alicerçando o lixo em triste monte...
Pois esse lixo é o lixo de suas obras,
a se exibir na feira das vaidades,
como se fossem mais que aleivosias...
E com sua rede de veneno, pobres cobras,
procuram se esconder de minhas verdades,
para estancar de mim as fantasias...
FUMAÇA DE TINTA III
Mas o jorro de minha fonte é mais constante
e mesmo que eu não busque me exibir,
sequer os versos que fiz já repetir,
porque não torno ao passado de um instante,
os seus dejetos têm mácula inconstante
e meu fino jorrar, a reluzir,
lava a imundície que o tenta recobrir,
lava o despeito e a inveja delirante...
E por mais que me tentem esconder
ou fingir que nem sequer me encontro lá,
o jorro se reforça em jato frio
e para os lados expulsa o malquerer
e a fonte límpida se expande e, em puro já,
gera um regato e então se torna um rio.
FUMAÇA DE TINTA IV
É muito fácil a cortina de fumaça
espalhar mediocremente, como um véu.
Quando não podem me tornar em réu,
fingem não ver a peregrina graça
destes poemas em que a mente se desfaça,
em mil gotículas que descem desde o céu,
em mil esporos espargidos pelo léu,
em orvalho multicor, livre de jaça...
De nada adianta usar de uma peneira,
ou mesmo pano grosso de estamenha,
para cobrir meu sereno faiscante.
Pois entre as malhas dessa tola esteira,
ninguém consegue impedir que ao olhar venha
cada faísca de seu menor brilhante.
FUMAÇA DE TINTA V
Antigamente, usava-se fuligem,
misturada com óleo ou com gordura
para fazer a tinta negra pura,
lançada então ao papel como uma impingem.
Essas fumaças que os planos nos atingem
das paredes e dos tetos de lisura,
dos vigamentos da velha tessitura,
dos pergaminhos de memória que nos cingem.
Era a tinta a descendente da fumaça
que se estendia sobre folhas inocentes,
que a brancura do papel tudo recebe...
Quer seja o brio ou quiçá longa pirraça,
são tristes frases da fuligem descendentes
de quanto belo ou tolo se concebe...
FUMAÇA DE TINTA VI
E assim é hoje outro tipo de fumaça
em que o coro dos medíocres se oculta,
que em auto-louvor a si se indulta,
sem auto-crítica a alumiar a sua desgraça.
Pouco me importam os louros dessa raça,
pois nada escrevo para a turbamulta.
O seu louvor, de certo modo, insulta
e me faz encarar como pirraça
os próprios versos que já fiz. Se gostam,
é porque podem a todos entender
ou porque pensam de forma assemelhada.
E ponho em dúvida as linhas que se empostam,
só destinadas a meus amigos ler,
qual se, no fundo, já não valessem nada.