QUEDAS AZUIS / NACOS DE LUZ / SÉPALAS PARTIDAS
QUEDAS AZUIS I -- 16 SET 11
Esses degraus que sobem às montanhas
alguém está lavando com cuidado.
Não vá ter uma entidade escorregado
nos patamares de ascensões tamanhas.
Não há chuva a descer em mansas manhas:
o detergente pinta a água de azulado
e elas descem por degrau já desgastado
nesses taludes de escadas tão estranhas.
Mas quando chegam na calçada, descoloram,
se tornam rosa, carmim e amarelas,
com filetes de brancor a meio delas,
essas águas de lixívia que ali choram,
restos de tinta talvez dessas janelas
abertas na mansão em que os deuses moram.
QUEDAS AZUIS II
São as quedas que percorre a Macareña,
com mais cores que o famoso tangará.
Corredeiras mais estranhas já não há:
correm mais brancas desde cada penha,
correm cinzentas quando se desenha
o reflexo das cidades, de onde já
descem os esgotos, a Deus-dará,
sem que preocupação qualquer se tenha
pela sorte dos que moram à vazante
ou pelos peixes que sobem à jusante,
para repor suas ovas nas nascentes.
Que tantos rios tem, de fato, detergentes,
derramados em descaso delirante
pela saúde das futuras gentes...
QUEDAS AZUIS III
Há outros rios de águas amarelas,
reluzindo douradas como o Sol.
Há mais correntes refletindo o arrebol,
vermelhas da ferrugem em arruelas.
Há outras águas que nenhum farol
consegue penetrar o negror delas.
São terras férteis que rasgaram elas,
e carregam sedimentos a seu gol.
E há rios verdes refletindo a mata,
entremeados por troncos mais marrom,
seus presentes conduzindo ao casamento
da praia com o oceano, em longa data.
cada um deles guardando o próprio tom
nessas correntes de eterno movimento.
QUEDAS AZUIS IV
Contudo, são azuis em cada mapa
geográfico, por antiga convenção.
Algumas vezes, riscos negros são,
mas em geral, é o azul que a terra encapa
pelas lisas superfícies dessa capa
com que as terras rodeia a imensidão.
Três quartos do planeta assim estão,
além das margens e praias que ainda empapa.
Mas estas quedas são, de fato, azuis,
e não somente refletem o firmamento.
Há minérios dissolvidos, nessa acesa
escavação de luz, saltos exuis,
que se refletem em colares de portento,
em sua estranha cachoeira azul-turquesa.
NACOS DE LUZ I (2009)
O que eu queria mesmo era colher
o tempo, como os frutos de um pomar.
Envolvê-lo em papel, poder guardar
momentos empoeirados de mister.
Depois, eu prenderia no talher
essas migalhas de tempo singular
e então, em delicado retalhar,
eu provaria o sumo de um qualquer
instante conservado, qual compota,
em um bujão de vidro cerebral,
com o maior carinho preservada.
Serias assim aos outros ignota,
pois te preservaria natural,
dentro de mim eterna conservada.
NACOS DE LUZ II (25 SET 11)
Queria o teu amor guardar em taça,
misticamente coberta de desejo,
envolvida na película de um beijo,
guardado amor que o tempo não perpassa.
Queria o tempo desse amor de pura graça
conservar perpetuamente nesse ensejo.
A sua pureza, no cristal que vejo
seria a fúria de um rubi sem jaça.
Queria o tempo desse amor guardar
e conservá-lo sobre a prateleira,
em que incidisse a radiação solar.
E quando os raios por ali brilhassem,
eu poderia tal centelha contemplar,
mais do que o Sol mostrando-se altaneira.
NACOS DE LUZ III
Queria o tempo de teu amor constante
conservar em botijas de cristal.
Em refração de brilhante carnaval,
eu poderia guardar-me cada instante.
E então te beberia, delirante,
a recordar cada abraço temporal,
a percorrer-te as cordas num fanal,
raio de sonho em concretude impante!
E queria conservar meu próprio tempo
em garrafas de vinho transparentes,
para dispor garbosamente de teu lado.
E quando sobreviesse meu retempo,
teus olhos visse junto a mim presentes,
ambos os tempos num instante entrelaçado.
NACOS DE LUZ IV
Porém surge nesta vida uma tendência
a desequilibrar taças de tempo.
Esses momentos sofrem contratempo,
por mais guardados sejam com paciência.
E quando caem, espalham redolência
que explode pelo chão, nesse destempo.
Então derramo o meu próprio retempo,
para aspirá-lo misturado a tal vivência.
Não bebo o tempo e nem sequer o amor,
somente inspiro o perfume que se evola,
nesses nacos de amor feitos estilhas.
E te confesso que os cacos dessas bilhas
só encontram sangue por cimento e cola,
pavimentando meu peito em seu ardor.
SÉPALAS PARTIDAS I (JAN 2009)
Seus lábios me percorrem, lentamente
o dorso de minha mão. Leve saliva
refresca a derme, o rastro de uma diva,
enquanto o bafo se escoa ternamente.
Suas mãos prendem a minha, docemente,
seus olhos se derramam, qual ogiva
carregada de pólvora, furtiva
na explosão que provoca, suavemente.
E assim, de um a um, se eriçam pelos
e o arrepio ascende pelo braço,
até que o choque molha o coração.
Por mais que sejam raros tais desvelos,
é quanto basta por deixarem traço,
que não se apaga mais da exaltação...
SÉPALAS PARTIDAS II
Outra vez a contemplo e mal entendo
por que não tem havido oscilação,
mas que venha estuando de emoção
e conservando o dote que compreendo.
Mas está tão diferente, que pretendo
ainda me conter, sem ilusão,
sem me entregar totalmente à exultação,
antes que tombe do pináculo a que ascendo.
Quem me dirá qual a manipulação
que a leva a me tratar assim tão bem,
depois de tanta agrura e grosseria?
Tal qual se fosse tão só preparação,
para novel surpresa repentina
a me levar outra vez à antiga sina?
SÉPALAS PARTIDAS III - 14 SET 11
Mas, afinal, por que filosofar,
quando ela é a parca que corta meu destino,
quando é a sacerdotisa do meu sino,
quando é a estrela do meu despertar?
Mas, afinal, do que estou a reclamar,
nesses minutos em que nela me reclino,
quando usufruo o momento peregrino,
por mais que outro intervalo vá passar
até que novamente se disponha
a me mostrar a flor que me acarinha
e receber-me em emoção de amante?
Melhor que esqueça a trégua mais tristonha
e a receba a cada vez que se avizinha,
no seu capricho de um gentil instante.
SÉPALAS PARTIDAS IV
E então meus lábios que a percorram toda
e lhe deem prova de agradecimento
e que a surpresa plena do momento
não seja esperdiçada nessa roda...
Mesmo que seja artifício em que me engoda,
estou consciente no meu pensamento
e prefiro ocultar no esquecimento
os funestos instantes de outra moda...
Porém, de fato, o que me excitaria
seria contar com a disponibilidade,
nessa certeza do dia do amanhã.
Não fosse nele minha espera vã,
pelos dias em que não demonstraria
por minha presença total sensualidade.