RIACHINHO / CRITÉRIOS / AVENCAS
RIACHINHO (JAN 2009)
Enquanto o calor gira, eu menos sou,
meu cérebro esvai-se em meu suor,
nem a mim mesmo atraio para amor...
Lembro de mim?... Finjo que não estou.
Olho meus olhos e nada mais restou
que fios no espelho em riscas de vapor,
pior que o pranto provocado no rigor
da pior rejeição que me provou!...
Este martírio sofro a cada estio,
na máquina de lavar, com amaciador
então me enfio e ali fico a girar,
olhando o mundo, no temor do fio
desse corte fervente e abrasador,
para na corda depois me pendurar!
RIACHINHO II (2 SET 11)
E confessemos: não é só o verão:
até no inverno, ao caminhar eu suo.
Se caminho de noite, então me aluo,
Se caminho de dia, é insolação...
Contudo, mesmo assim, eu não me nuo:
sempre uso camisa em proteção,
não de mim, é das coisas que ora estão
a meu redor, em permanente duo.
É preferível que a roupa então ensope
do que o teclado meu suor corrompa
ou que o email se torne escorredio...
Pois o calor qualquer programa entope
e afasta totalmente cada pompa
e até derrete da Internet o fio!...
RIACHINHO III
Eu já verti por ti suor de alma,
escorrendo pela ponta de meus dedos
e a mente na vertente dos segredos
virou o suor que me reveste a palma.
As digitais também são filhas dalma,
a flutuar nas pocinhas de meus medos
e saem em vapor, carinhos ledos,
a diluir-se nos cantos de minha calma.
Enquanto vou aos poucos derretendo,
o meu suor se torna mais potente
e sai à rua igual que fosse eu!...
Mas o vapor de mim vou escorrendo,
diante do zéfiro, ventilador clemente,
sem coragem de envolver o corpo teu!
RIACHINHO IV
E só imagino, ao longo dessas eras,
quantas almas de suor eu já verti!...
Quantos riachos têm nascente aqui,
e quantas plantas reguei nesses esperas.
E só imagino, ao sopro das quimeras
dessas almas de vapor que produzi,
como a cidade inteiramente revesti
com essa horda de líquidas esferas.
Pois no verão me desfaço totalmente
e quem quiser me achar, procure poça
e ali minha face se achará espalhada.
Talvez seja essa lagoa até clemente,
e nesse espelho que seu rosto roça,
divise uma canção encarquilhada!...
CRITÉRIOS I - 10 SET 11
Quando todos te elogiam, cuida bem
o que é que fazes, pois, provavelmente,
algo em ti anda errado, quando a gente
se faz disposta a te louvar também.
Porque o normal é sempre, quando alguém
realmente agir certo, que potente
seja a crítica ou quanto muito, indiferente
e em quanto fazes, encontre seu porém.
Portanto, te surpreende quando o povo
só fala bem de ti, sem maltratar
qualquer que seja das realizações
em que te empenhas num projeto novo:
talvez apenas te deixaste acomodar
ao mesmo nível das vãs aceitações.
CRITÉRIOS II
Mas nem por isso é preciso procurar
por qualquer meio de a todos ofender,
só para a originalidade proteger
e desprezo pelo mundo demonstrar.
Nem é preciso construir o teu lagar
de forma diferente, a teu prazer,
ou estranhos artefatos recolher
nos escaninhos de teu próprio lar.
É mais uma questão de apenas ser
não aquilo que se quer, mas que se é:
mostrar-se sob a máscara da face,
mesmo que isso te faça estremecer,
ao ver os ossos por baixo dessa fé,
quando o rosto verdadeiro se estampasse.
CRITÉRIOS III
Pois na verdade, nada mais importa
que a aprovação de uma única mulher:
que seja a permissão de quem se quer,
vista em sorriso que seu rosto corta.
De quem por teu amor, amor reporta
e não te desaprova, nem sequer
ao preferir diverso o teu mister,
mas cuja aceitação tudo comporta.
Que ao grangeares os elogios dela,
que importa o mundo te critique totalmente,
se vês sinceridade nos seus traços?
E assim te vejas refletido na janela
de seu olhar de límpida nascente,
na solidão partilhada dos abraços.
CRITÉRIOS IV
Que seja assim, em análise perfeita,
embora saibas que amor não seja
o critério mais perfeito que se almeja,
pois quem nos ama em muito nos aceita.
Mas que sopeses a fórmula escorreita
que brota só de ti e que te enseja
nem auto-crítica, que por demais rasteja,
nem a certeza que a vaidade aleita.
Mas olha o mundo com olhar de fonte,
nessa lente de arco-íris cristalina,
sabendo o que é sincero em seu louvor
e o que se esconde por trás desse horizonte
que ao rancor e à inveja se destina,
enquanto te demonstra um falso amor.
AVENCAS I - JAN 2009
Como vou responder ao corrupio
expresso assim em alheio sentimento,
quando minha própria alma catavento
se torna dos caprichos deste estio?
Como posso embarcar nesse navio,
quando a bagagem não passa de relento,
quando a paisagem é rodopiar de vento,
que me arranca do peito todo o brio?
Porque, afinal, resposta já não tenho:
só quero a brisa para me engolfar
e nem sei mais fazer versos no verão...
Assim em leio apenas, quando venho:
vejo as palavras negras a pingar
e nem sequer me pulsa o coração.
AVENCAS II - 11 SET 11
É então que busco o inverno na minhalma:
busco tristezas a me refrescar,
busco fracassos a me resfriar,
busco saudades lá no fundo dalma.
Pois me servem de abanico e me dão calma,
e só assim eu paro de ofegar;
com a canícula me posso aquerenciar:
meu desalento toda a vida embalma.
Assim resisto mais à investida
dos males do presente e do fervor
e faço, aos poucos, palpitar o coração
por tanta dor que já sofri na vida,
por toda a ânsia que não tem favor,
nessa plena frialdade da emoção.
AVENCAS III
E então me vejo a refletir as açucenas,
que ainda orvalham, permeio a esse verão,
hemerocálides e lírios aqui estão
que não parecem lamentar cálidas cenas.
Assim espelho das flores as centenas,
as que me abrandam do suor a profusão:
elas refrescam suas pétalas e o chão;
o meu suor refresca tantas penas.
E eu sou assim: o reflexo do irreal,
a sombra de um fantasma sem igual,
de quem no mundo nem sequer viveu.
E somente uma emoção ainda floresce,
luz cristalina, mais longa que uma prece:
essa certeza de que ainda sou teu.
AVENCAS IV
Mas quando os outros louvam o calor
e saem por aí, fantasmas vivos,
passeando em cores, risos redivivos
e comparam o verão ao som do amor,
eu olho apenas pelas pás de um exaustor,
perfilho o vento a deformar cativos,
contemplo só de leve sons esquivos
e dos raios do Sol fujo ao fervor.
Porquanto é quando me protege o frio
que mais me encho de glória e de entusiasmo:
então eu saberei ser teu amante.
E te acalentarei, em pleno cio,
com meus dedos e meus lábios já te orgasmo
e te conduzo a um espasmo delirante.