FAZENDO AMOR / ALIENÍGENA / TIMBUCTU
FAZENDO AMOR I (6 OUT 11)
Sobre o leito de flores amarelas,
com o núcleo encarnado incandescente,
folhas vermelhas a pintalgar frequente
o fundo branco e pristino de donzelas,
vejo o casal com expressões singelas,
esse cãozinho negro subjacente,
sob o gato amarelo, complacente,
nesse abraço de estranhas bambinelas...
pois realmente o cãozinho tão bisonho,
voltado para o ar, supinamente,
abraça o gato com as quatro patinhas
e o bichano o recobre qual em sonho,
em pronação completa, indiferente
ao que humanos pensem dessas linhas.
FAZENDO AMOR II
é como se executassem ato sexual,
embora só o humano o represente,
a perceber o mal no ato inocente
desse abraço em posição pouco habitual
pois é comum cães e gatos, afinal,
quando criados juntos, normalmente,
aninharem-se nos outros, tão somente
no usufruto do calor de outro animal.
já o olhar do cãozinho, surpreendente,
parece mesmo sugerir malícia,
como criança apanhada em travessura,
enquanto o gato está completamente
concentrado no fulgor da impudicícia
desse sono de amor feito ternura...
FAZENDO AMOR III
é claro que seria diferente.
a posição sexual de frente a frente
caracteriza tão só a humana gente:
os animais copulam só por trás.
porém é a semelhança que nos faz
imaginar outro ato que perfaz
e à nossa mente excitação nos traz,
mas para eles é tão só indiferente.
de certo modo, até fazem amor,
seu abraço inter-racial nada frequente,
é uma busca de carinho e calidez.
nesse aconchego da cama multicor
existe mais amor que em muita gente
que encara o sexo com tanta timidez.
ALIENÍGENA I (9 OUT 11)
Dizem que a dor ensina a se gemer,
porém eu sofro mesmo é no calor.
É o que me drena de todo o meu valor:
vem da canícula este meu padecer.
Já tive dores de me enfraquecer,
da mente e corporais, qualquer teor.
Enfrento todas com gana e sem temor
e quando grito, a dor ponho a correr...
Mas o calor é maldição traiçoeira,
insídia da preguiça e do desleixo,
vasta impureza que tudo desvalia!...
Meus olhos se comprimem nessa poeira,
e já sufoco se apenas dedo mexo
e me desfaço em vagas de entropia!...
ALIENÍGENA II
Meu problema é que sinto mais calor
que a maioria destes meus parceiros.
Quando vestia trajes domingueiros,
praticamente derretia de suor!
Quando entre nos bancos, é estertor.
Dou meus passos pela rua bem certeiros,
sem sentir frio em tantos paradeiros,
mas ao entrar, já sinto esse fedor,
que é por tantas pessoas provocado,
mesmo que usem mil desodorantes,
somente escondem a falta de seu banho!
E então eu sofro no ar condicionado
e me arremango, vendo os circunstantes
a me olhar de relance, como a estranho!
ÁLIENÍGENA III
O mesmo ocorre em ônibus da linha
intermunicipal, quando viajo.
Eu me limito ao mais ligeiro trajo,
enquanto outros se cobrem até a bainha!
E alguns parecem tremer, igual tainha,
enquanto é o calor que me incomoda
e pouco entendo o jeito dessa roda
que nos assentos ao redor se apinha...
Sou irmão gêmeo do ventilador,
que me traz um alívio mais clemente,
a rasgar esse calor antes que fira.
E na sua ausência, me abano com ardor,
para espanto , talvez, de tanta gente,
enquanto meu boné nos dedos gira!...
TIMBUCTU I (jan 2009)
Estou driblando o fantasma do calor
que sobre mim derrama sete vícios,
sete vulcões em fúria, malefícios,
males que sinto mais fortes do que o amor.
E é durante essas semanas de pavor
que me vejo destinado aos sacrifícios,
como vítima queimada nos solstícios,
ainda evadida à mão do executor.
A lua de verão, porém, é aziaga,
só se mostra no céu em que azinhavra
o que podia ser vento e foi vinagre.
É uma lua que mostra má azinhaga
que leva a mau caminho e a mente lavra
até que ao altar do holocausto nos consagre.
TIMBUCTU II (16 OUT 11)
Hoje o verão novamente se aproxima,
embora seja ainda a primavera
e já me assusta o calor, qual besta-fera,
embora os outros apreciem o clima.
Vejo o futuro com mente cristalina,
uma hiena em tocaia que me espera.
Dizem que o Sol é amigo -- quem me dera!
Por mais que seja uma luz quase divina,
em cuja ausência cessaria a vida
e assim com ela se extinguisse a minha...
Mas preferia que me fosse mais ameno.
E me escondo bem fundo em minha guarida,
fugindo ao sol que a pele me espezinha,
só andando em madrugada e no sereno...
TIMBUCTU III
Sei muito bem que o calor é relativo.
Na linha do Equador é bem maior
e por isso me recuso ao mal pior
de viajar ao Grão-Pará sempre me privo...
Mas nesses meses de tão infausto crivo,
vivo na frente do ventilador,
com ele tenho até caso de amor,
se bem que à brisa leve não me esquivo...
Só agradeço, com terna gratidão
por não viver lá por Timbuctu
ou em Dakar ou no Amazonas belo,
enquanto aguardo a eventual ação
dos ventos frios sobre meu rosto nu,
trazendo um sopro do país do gelo!