O BOTÃO DE ROSA

O campo abrira o seio às expansões frementes

das árvores senis, dos galhos viridentes.

Caía a tarde fresca

Loira, gentil, vivaz como a canção tudesca.

A iluminada esfera

Calma, profunda, azul como um sonhar de virgem,

Dava um brilho-cetim às verdes folhas d'hera.

No ar uma harmonia avigorada e casta,

No crânio uma vertigem

Duma idéia viril, duma eloqüência vasta.

Tardes formosíssimas,

Ó grande livro aberto aos geniais artistas,

Como tanto alargais as crenças panteístas,

Como tanto esplendeis e como sois riquíssimas.

Quanta vitalidade indefinida, quanta,

Na pequenina planta,

No doce verde-mar dos trêmulos arbustos,

Que misticismo, justos,

Bebia a alma inteira ao devassar o arcano

Das árvores titãs, das árvores fecundas

Que tinham, como o oceano,

Febris palpitações intérminas, profundas.

Esplêndidas paisagens,

Opunha o largo campo às vistas deslumbradas.

As múrmuras ramagens,

À luz serena e terna, à luz do sol - que espadas

De fogo arremessava, em frêmitos nervosos,

Pelo côncavo azul dos céus esplendorosos,

Tinham falas de amor, segredos vacilantes

Finos como os brilhantes.

A música das aves

Cortava o éter calmo, em notas multiformes,

Límpidas e graves

Que estouravam no ar em convulsões enormes.

Aqui e além um rio

Serpejava na sombra, em meio de um rochedo

Áspero e sombrio.

O olhar perscrutador, o grande olhar, sem medo

E o espírito mudo,

Como um herói gigante avassalavam tudo...

Nuns madrigais risonhos

Abria-se o país fantástico dos sonhos.

Alavam-se os aromas

Leais, inexauríveis

Das largas e invisíveis Selváticas redomas.

A seiva rebentava

Em ondas - irrompia

Na doce e maviosa e plácida alegria

De uma ave que cantava,

Dos belos roseirais

Que ostentavam a flux as rosas virginais.

E as jubilosas franças

Dos arvoredos altos,

Rígidos, atléticos,

Derramavam no campo uns fluidos magnéticos

Dumas vontades mansas.

A doce alacridade ia explosindo aos saltos.

E toda a natureza

Robusta de saúde e estrênua de grandeza

Libérrima e vital,

Erguia-se pujante, audaz e redentora,

No gérmen material da força criadora,

Dentre a vida selvagem, mística, animal...

Dos roseirais preciosos

Nos renques primorosos,

Numa linda roseira abria castamente,

Como um sonho de luz numa cabeça ardente,

O mais belo, o mais puro entre os botões de rosa.

Tinha essa cor formosa,

Tinha essa cor da aurora,

Quando ensangüenta em rubro a vastidão sonora.

Era um botão feliz

Sorrindo para o Azul, zombando da matéria.

Tinha o leve quebranto e a maciez etérea

Que uma estrofe não diz.

Das pétalas macias,

Das pétalas sanguíneas,

Doces como harmonias

Brandas e velutíneas

Uns perfumes sutis se espiralavam, raros,

Pela mansão do Bem, pelos espaços claros.

Perfumes excelentes,

Perfumes dos melhores

Perfumes bons de incógnitos Orientes.

Matéria, não deplores

O viver natural dos vegetais alegres;

Eles são mais ditosos

Que os nababos e reis nos seus coxins pomposos;

E por mais que tu regres

O matéria fatal, a tua vida inteira,

No rigor da higiene;

E por mais que a maneira

Do teu grande existir, desse existir - perene

De ironias e pasmos,

Explosões de sarcasmos

Tu completes, matéria - ó humanidade ousada

Com a ciência altanada;

E por mais que no século,

Tu mergulhes a idéia, o prodigioso espéculo,

Será sempre maior e exuberante e forte,

Ó matéria fatal,

Essa vida tão rica

Que se corporifica

Na valente coorte

Do poder vegetal.

Era um botão feliz,

Cuia roseira, impávida,

Ébria de aromas bons, ébria de orgulhos - ávida

De completa fragrância,

Palpitava com ânsia

Desde a própria raiz.

E entanto o sol tombara e triunfantemente

Como um supremo Rubens,

Jorrando à curvidade etérea do poente,

O ouro e o escarlate, aprimorando as nuvens,

Numa distribuição simpática de cores,

De tintas e de luzes

De galas e fulgores

Rubros como o estourar dos férvidos obuses.

O cérebro em nevrose,

No pasmo que precede a augusta apoteose

De uma excelsa visão perfeitamente bela,

De uma excelsa visão em límpidos docéis,

Exaltava o acabado artístico da Tela

E o gosto dos pincéis.

Caíam da amplidão em névoas singulares

Os pálidos crepúsculos.

Os fúlgidos altares

Do homem primitivo - a relva, o prado, o campo

Onde ele ia buscar a força de uma crença

Que então lhe iluminasse a alma escura e densa,

Morriam de clarões - os poderosos músculos

Da fértil mãe de tudo - a natureza ingente -

Deixavam de bater. - O olhar do pirilampo

Oscilava, tremia - azul, fosforescente.

As sombras vinham, vinham,

Lembrando um batalhão d'espectros que caminham

E a casta nitidez sintética das cousas

Tomava a proporção das funerárias lousas.

Completara-se então o mais extraordinário,

O mais extravagante,

Dos fenômenos todos:

A noite. - Enfim descera a treva do Calvário,

A treva que envolveu o Cristo agonizante.

Coaxavam negras rãs nos charcos e nos lodos.

A abóbada espaçosa, a física amplitude,

Mostrava a profundez da angústia de ataúde

De um operário pobre,

Quando se escuta o dobre

Amplíssimo e funéreo,

Sinistro e compassado,

Rolar pela mansão gloriosa do mistério,

Assim com um soluço aflito, estrangulado.

Devia ser, devia

Por uma noite assim,

Como esta noite igual,

Que derramou Maria

A lágrima da dor, - que o célebre Caim

Sentiu dentro do crânio as convulsões do Mal.

Mas o botão de rosa,

Traído pelo estranho zéfiro da sorte,

Rolou como uma cisma

Intensa e luminosa

Ardente e jovial em que a razão se abisma

E foi cair, cair no pélago da morte,

Em um dos mais raivosos,

Em um dos mais atrozes

Rios impetuosos,

Cheios de surdas vozes,

Sozinho, em desamparo, assim como um proscrito,

Em meio à placidez

Dos astros no infinito

E à mesma irracional e fúnebre mudez.

Depois e além de tudo,

Além do grave aspecto inteiramente mudo,

Ao tempo que morria

O cândido botão - em um dos tantos galhos

Virentes da roseira - alegre no ar se abria

Um outro que ostentava as pétalas sedosas,

As pétalas gracis de cores deliciosas,

De cores ideais.

As auras musicais

Passavam-lhe de leve,

Nos tímidos rumores,

De um ósculo mais breve.

E dentre a exposição das delicadas flores,

Das rosas - o botão

Aberto ultimamente às cúpulas austeras,

Às plagas da esperança, a irmã das primaveras,

Pendido um quase nada, esbelto na roseira,

Mostrava aquela unção,

A ínclita maneira

De quem se glorifica

Subindo ao céu azul da majestade pura,

Da eterna exuberância,

Da fonte sempre rica,

Da esplêndida fartura

Da luz imaculada - a egrégia substância

Que faz das almas claras

Pela fecundidade olímpica do amor, Magníficas searas,

De onde se difunde à vida sempiterna,

À vida essencial, à lei que nos governa,

À idéia varonil do poeta sonhador.

A arte especialmente, esse prodígio, atriz,

Como o botão de rosa

Tão meigo e tão feliz,

Pode ser arrojada e brutalmente, ao pego,

Na treva silenciosa,

Onde o espírito vai, atordoado e cego,

Cair, entre soluços,

Como um colosso ideal tombado ao chão de bruços,

Ou pode equilibrar-se em admirável base

Estética e profunda,

Assim, bem como o outro, à mais radiosa altura.

Deves sondá-la bem nesta segunda fase.

Precisas para isso uma alma mais fecunda.

Precisas de sentir a artística loucura...

Cruz e Sousa

Zorro Poeta
Enviado por Zorro Poeta em 30/10/2011
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