CORDÕES DE LUZ / PEDÚNCULOS

PEDÚNCULOS I - 19 NOV 09

Dias houve em que das órbitas meus olhos

corriam de te olhar. Eu os mandava

atrás de ti ao vento e te enxergava

nas refeições; e no banho teus refolhos

contemplava com ânsia, assim de longe.

Meus olhos eram teus, de mais ninguém,

como se o mundo nada mais também

tivesse, nesse ergástulo de monge,

que eram meus antolhos, que impediam

minha visão de outra mulher qualquer:

meus olhos te seguiam, axônios loucos

sem nervos ou retinas, que surgiam

no meio de teus sonhos, sem sequer

serem vistos por ti, nem mesmo aos poucos.

PEDÚNCULOS II

Mas, lentamente, vão-se retraindo

estes meus olhos: os nervos já se encolhem

sob a força do vento e se recolhem,

nas órbitas vazias se inserindo...

Mas como eu via com o olhar vazio!

Agora que minhas vistas retomei,

vejo tão pouco... O meu olhar deixei

nas dobras de teu rosto, fio a fio.

Hoje só vejo o que está a meu redor,

as pálpebras se encheram de cegueira,

não mais consigo avistar os teus segredos...

O mundo inteiro assim se fez menor...

Mas ainda vejo teu rosto em grãos de poeira,

como só o pode o olhar dos citaredos... (1)

(1) Tocadores de cítara, um instrumento antigo usado pelos poetas para acompanhar o canto de seus versos.

PEDÚNCULOS III

Ai, olhos meus, aflitos de esperança!

O nervo ótico, em ligação direta

com as redes neurais, aguda seta,

cravou-se em ti, num apego de criança,

e embora a vista nunca ora te alcança,

as imagens queimaram-se, completa

marca de ferro e aço, tão dileta

como se um signo fosse de bonança!

E assim te vejo inteira, nesta mente:

tanto aquilo que de ti de fato vi,

como os momentos da imaginação;

e todos superpõem-se internamente:

ainda que longe, agora eu vejo a ti,

revestida em áureas brumas de ilusão.

PEDÚNCULOS IV

Meus olhos, com as nuvens como berço,

se reclinavam para te enxergar,

desciam sobre ti, sem descansar

dedilhando teus passos qual um terço.

Tua sombra enegrecia pela luz

que meus olhos dardejavam sobre ti,

sob os cabelos teus segredos vi

e te adorava como outros à cruz.

Por onde andavas, te aquecia eu,

com o calor de meus olhos palpitantes,

os fogos-fátuos do inaudível canto,

a teu redor tal qual escudo e véu,

meus dedos de luar expectantes,

em meu santelmo de invisível pranto.

PEDÚNCULOS V

Vão contra ti os pedúnculos dos dedos,

se expandem pela noite, unhas cortadas,

paredes atravessam, despeitadas,

nessa busca sutil de teus segredos.

Levemente te roçam, em seus medos,

apenas para ser identificados

quando geram tuas sombras, projetados

em seu leve tatear, momentos quedos.

Quando se escondem nas gretas do reboco

e se contentam com o brando palpitar

que esparze o vento quando te deslocas,

meus longos dedos neste sonho louco,

ansiando o teu perfume captar,

quando a parede casualmente tocas...

PEDÚNCULOS VI

Esses dedos sonoros, escondidos,

à espreita nas frestas da argamassa,

teu vulto almejam cada vez que passa

e permanecem apenas pressentidos...

E apenas percutindo em teus ouvidos,

a murmurar a ti paixão sem jaça,

cada silvo de amor que te perpassa,

na exultação de amores incontidos...

Mas que contidos são, nessa tocaia:

são como microfones suas papilas

ou como infravermelho equipamento,

que descarte outros calores numa vaia,

buscando apenas o tom com que aniquilas

toda impressão de alheio sentimento.

PEDÚNCULOS VII

Também saltam das narinas

pedúnculos a respirar,

na busca de conquistar

os olores dessas finas

mãos de veias pequeninas,

já gastas de trabalhar,

mas que não posso deixar

de querer quais duas minas

dos carinhos que não tenho,

da passagem de teus dedos

na aspereza de minha face,

talhada à faca num lenho,

acobertando os degredos

desse amor que não desfaz-se...

PEDÚNCULOS VIII

Dos ouvidos me saíram

dois pedúnculos em par,

enfeitados de luar,

quando tuas frases ouviram,

se teus passos pressentiram,

na ginga do teu andar,

buscam somente escutar

esse som com que respiram

as narinas de teu rosto,

no cheiro do teu alento,

nas horas boas e más,

E se contentam no mosto

desse meu amor de vento,

que só o gelo satisfaz!

PEDÚNCULOS IX

Que venha o cheiro em singular momento,

captado por papilas cristalinas,

essas vinhas de tocaias ambarinas,

que só buscam captar teu movimento.

Com pedúnculos dos dedos me contento:

eles conseguem luzes peregrinas

traduzir pelo tato em percalinas

a encadernar meu vago sentimento.

Porque toda essa mágica descrita

só existe no meu sonho, em teimosia

e reconheço, quando em plena calma,

que é tão somente a descrição aflita

de quanto anseia por ti a fantasia

que ainda albergo no fundo de minhalma!

PEDÚNCULOS X

Tua voz eu conservei em meus ouvidos,

envolta em cera como um queijo fino;

tenho um armário lá, desde menino,

em que resguardo os tons mais escolhidos.

Quando criança, os tesouros preferidos

eram canções populares, sons de sino,

o grito dos pardais ao sol a pino

(da mamadeira os gorgolejos tidos...)

Quando cresci, meu gosto musical

se refinou para a música erudita,

com ela enchi minha memória aural.

Depois fiquei eclético e conquista (2)

o folclore seu espaço natural,

porém tua voz é ainda a mais bonita...

(2) Rima toante.

PEDÚNCULOS XI

Nem sei se ainda há lugar em meus ouvidos

para a voz de alguém mais além da tua.

Pedúnculos envio sob a Lua,

para guardar os timbres esquecidos...

Outros sons de passagem são contidos,

outras vozes de mulheres pela rua.

Eu só desejo conservar a tua voz nua,

nos escaninhos da memória bem mantidos.

Porque às vezes, tu sabes, eu esqueço

até os teus sotaques, diferentes

dos emitidos por todas as demais.

E às miçangas do vento então eu peço

para gravar teus tons mais eloquentes,

que então registro, sem perder jamais!

PEDÚNCULOS XII

Sabes assim seres dona dos sentidos

que ainda conservo enquanto sobrevivo;

após a morte, em mim é redivivo

esse som de tua voz em meus ouvidos.

O palpitar de tantos tempos idos,

o esboço desse amor ainda ativo,

essa tua imagem repassada a crivo,

o gosto e o cheiro ainda pressentidos.

O que menos conservo ainda o toque,

a filtração da pele aveludada

que assim roubei com a ponta destes dedos...

Mantendo o sexo em menor enfoque,

a minha mente se evola, ainda encantada,

pelo usurpar de todos os teus segredos...

CORDÕES DE LUZ I - JAN 2009

Eu vou morrer num dia de calor,

em que se esgota o derradeiro pingo

dessa energia com a qual me vingo

do mundo sem prazer e sem amor.

Eu vou morrer crestado pelo ardor,

tão esgotado que nem mais eu xingo.

O passo lento, nem sequer eu gingo:

tenho paixão pelo ventilador...

Então me invade imensa gratidão

pelo mundo em que vivo e que proclamo

nesses meus versos de castiça métrica.

O que eu faria na assoberbação

de um calor de ainda maior reclamo,

se não houvesse a energia elétrica?

CORDÕES DE LUZ II - 13 SET 11

Vejo muitos hoje em dia se queixar

da vida urbana e do momento atual.

Querem retorno à vida natural,

quando vida mais saudável iriam gozar.

Sem perceberem como pode nos matar,

bem facilmente, esse tal mundo real.

Viver na selva não é um carnaval:

são vidas duras, de curto perdurar.

Foi tão somente a cultura da cidade

que permitiu aumentar a duração

da vida humana e que nos deu lazer.

Para o progresso de toda a humanidade

pela melhora da alimentação,

sem que de fome se viesse a perecer.

CORDÕES DE LUZ III

Antigamente, nas terras europeias,

a cada vez que o inverno se instalava,

morriam magros, enquanto só restava

um gordo emagrecido em centopeias!...

Só os mais gordos resistiam às epopeias

dessa fome que por meses perdurava,

por entre o frio que a terra enregelava:

só ocorriam nos verões as odisseias...

Enquanto hoje, a fome é africana,

precisamente onde não há cidades,

nos desertos e nas longas pradarias.

E mesmo ali se expande a raça humana,

com alimentos que trazem caridades

pelas comunicações de nossos dias.

CORDÕES DE LUZ IV

Antigamente, quando algo escasseava,

não se podia mesmo conseguir.

Não havia estradas para o conduzir

e a epidemia logo se espalhava

entre a gente desnutrida que ficava.

Foi a força do carvão a permitir

e o primeiro crescimento a produzir,

que aos povos europeus beneficiava.

Mas hoje existem esses cordões de luz

que percorrem as matas e os desertos,

linhas constantes de comunicações,

medicamentos da Vermelha Cruz,

e previsões contra tempos mais incertos,

quando se tomam possíveis precauções.

CORDÕES DE LUZ V

Essa gente não percebe que a energia

que nos permite viver mais longos dias

não se encontra nas matas arredias

e nem tampouco no campo antes havia.

Das possíveis não é esta a melhor via,

mas dentre todas que na história lias

é a que deu mais conforto às confrarias

da humana raça na estrada que seguia,

Calcetada de ossos, da infantil

mortalidade, das mil epidemias,

da gente velha já aos quarenta anos.

Porque mesmo quem vive sem ceitil,

vive hoje melhor que as senhorias

de tantos séculos antigos soberanos.

CORDÕES DE LUZ VI

Assim, eu agradeço ao tempo atual,

que me permite comer sem ter plantado

que me permite vestir sem ter cardado,

que me permite dormir sem temer mal.

Que às minhas doenças traz cura real,

na qual escuto as melodias do passado

ou vejo imagens do que foi filmado

muito antes de minha vida natural.

Que me permite viajar sem ter receio,

que me permite ler o que escreveram

os antigos sobre as guerras e o amor.

E, sobretudo, dar graças de permeio

por hidrelétricas que antes já ergueram

e agora acionam o meu ventilador!...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 18/10/2011
Código do texto: T3284286
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