ZARZUELA & MAIS
ZARZUELA
Eu sinto a noite como um rio de mágica,
que me leva consigo à madrugada...
Não como o dia, em sua citofágica
interferência que conduz a nada...
As horas passam lentas e a demora
circuncisão do tempo se evapora...
Molha-me o dia em tal interferência
e as sensações me banham de impaciência...
Suam de mim as horas nesse enclave
da torrente temporal que o sonho lave...
Enxugo o rosto e o instante mal se atreve
a dar-se a conhecer em sonho leve...
Não como o dia em sua interferência
de sensações que me banham de impaciência...
Porque esse instante não é meu, de fato:
é apenas um marasmo, um sumidouro
dos fatos de minha vida transitória...
Mas os momentos da noite são o grato
testemunhar de um novo nascedouro,
em que me escôo em direção à glória...
LEVEZA
Alguém me disse que eu amava o inglês,
porque dava minhas aulas com entusiasmo.
Pobre menina! Que quase num orgasmo
manifestou sua apreciação por mim...
Achei estranho... Na língua em que me lês,
não há lugar para tamanho espasmo...
Eu apenas sorri, cheio de pasmo,
ao perceber-lhe o que dizia, assim...
Porque mal reconhecia o sentimento
que suas artérias, dolente, percorria,
naquele efeito apenas espelhado...
Pois a mim logo acudiu o pensamento
que "amor inglês" disfarçava o que sentia:
que ao professor queria do seu lado...
LEVEZA II
Se amor eu sinto é da sonoridade
envolvida em palavras, melopéia
e cantilena nessa mesma idéia,
que reveste de ardor e qualidade
o aleatório conjunto da verdade,
em que palavras são apenas epopéia
de sílabas em fuga, uma odisséia
que só revela interna ambigüidade;
mas para mim, tal ritmo altaneiro,
ressonante e vocal, é inseparável
de qualquer tratativa de poesia:
e é por isso que aprecio o corriqueiro
amealhar do verso quebrantável
qual quente artéria aberta em sua sangria.
AO TALHO DA FACA I
Colocarei meus olhos em um prato
como se fossem ostras que comi.
De que me serve ter visão, de fato,
quando a vista não se volta para ti?
E cortarei meus dedos, um a um,
com gume palpitante; e na terrina
eu os colocarei, como a comum
conserva na salmoura se destina.
Depois, sem olhos e sem dedos já,
deceparei meu pênis e testículos,
as testemunhas da masculinidade.
Noutra gamela os deporei, quiçá,
que do desejo não mais sejam veículos
de te tocar e ver em minha saudade.
AO TALHO DA FACA II
Para mim, restam as flores do jardim
que Callíope preside em sentinela:
farei uma salada na gamela,
onde meus órgãos depositei assim...
De flores e perfumes marchetados,
de lágrimas da manga, a cada aguada
que a mim me cabe agora, conservada
apenas a verdasca dos passados.
As plantas sempre são aqüissedentas
e eu as regarei, no brando jato,
em que asseguro a nova brotação.
Mas a mulher que tenho, suas tormentas
foi acalmar, na ausência de contato,
não mais ansiando por fecundação.
AO TALHO DA FACA III
No meu trabalho, então, recolherei
a ausência de meus dias encegados,
de dedos desprovido, serei rei
dos espaços sem órgãos assanhados.
Mas conservo minha boca e gritarei,
cego e maneta, meus ideais castrados;
e então, meu próprio grito, escutarei,
na brida escura dos abandonados.
É transtorno de ti a voz da boca
e o som em meus ouvidos conservado:
memórias que não sei como apagar.
E enquanto o sonho a meu redor espouca,
em derradeiro ato amargurado,
corto meus lábios por não mais cantar.
AO TALHO DA FACA IV
ausência. Em sendo ausência, é revestida
dos beijos Mil de antanho, dulcifloros,
pois nem Havendo a recordar-lhe os ouros,
tampouco Ausência é em seu rigor sentida.
ausência. Em sendo ausência, é percebida
quais beijos Que não houve, mil calouros,
não se atenuam Sequer os seus desdouros
mas tão só Insatisfação em sua incontida
ausência. De não ter, ausência oca,
ausência. De ter tido, ausência tosca,
ausência. De uma ausência procurada,
ausência. Em sendo ausência, dessa boca
de lábios Cintilantes, língua fosca
que os Dentes mordem, quando revelada.
MINERAÇÃO
meu trabalho é para mim sudorsedento
ao longo do verão e até no inverno;
confesso ter prazer e mesmo um terno
sentimento pela obra, em que apresento
o melhor de meus esforços responsáveis;
até me esforço mais, é uma missão
de que recebo pleno galardão
nos finais que percebo mais louváveis;
mas isso não impede seja ingente
o estrênuo esforço que me rompe os dedos,
mais fáceis as marretas que o teclado;
pois meu suor me brota firmemente,
a fecundar das teclas os segredos
de um novo livro assim sendo gerado.
REGRAS DA VIDA XLVIII
É necessário sempre ter na vida
alguma coisa de tal importância
que nos permita tomar certa distância
e correr para fora de nós mesmos:
que nos afaste da diária lida,
dos monótonos deveres a constância,
dos adversos dias ressonância,
das noites sempre iguais e dias esmos;
não importa o que seja: um animal,
os filhos, uma aurora, um pôr-do-sol,
a melodia ou poema de um momento,
que sossegue nossa alma num final:
que não giremos como o girassol,
ao redor de si mesmo em desalento.
REGRAS DA VIDA XLIX (49)
Somente os bons conseguem ter remorso:
os malvados nem se sentem descontentes
com quanto aos outros façam, indiferentes
senão à dor que cai no próprio dorso.
Quando culpa, portanto, você sente,
isso é sinal de vida da consciência,
demonstrando conservar a presciência
de quanto é certo ou errado no presente.
Todavia, também pode ser egoísmo
chafurdar plenamente em culpa tal
que não lhe sobre tempo para a vida.
O mais simples é viver em silogismo
até sua conclusão e, no final,
nunca mais ao erro antigo dar guarida.
REGRAS DA VIDA L (50)
Se nada tem de bom para dizer
então não diga nada (e nada perde).
Talvez sem dar razão, nem ódio herde.
Por que um motivo de raiva conceder?
É muito fácil criticar, porém
bem mais difícil é achar um elogio.
Todas as gotas percorrem igual rio
e as que nós temos, os outros têm também.
Não importa quão horrível alguém seja,
bem procurando, existe qualidade
e, ao mencioná-la, causará surpresa.
Não perca então, quando ocasião se enseja,
a palavra agradável de bondade
que talvez lhe retribua gentileza.
ZARZUELA
Eu sinto a noite como um rio de mágica,
que me leva consigo à madrugada...
Não como o dia, em sua citofágica
interferência que conduz a nada...
As horas passam lentas e a demora
circuncisão do tempo se evapora...
Molha-me o dia em tal interferência
e as sensações me banham de impaciência...
Suam de mim as horas nesse enclave
da torrente temporal que o sonho lave...
Enxugo o rosto e o instante mal se atreve
a dar-se a conhecer em sonho leve...
Não como o dia em sua interferência
de sensações que me banham de impaciência...
Porque esse instante não é meu, de fato:
é apenas um marasmo, um sumidouro
dos fatos de minha vida transitória...
Mas os momentos da noite são o grato
testemunhar de um novo nascedouro,
em que me escôo em direção à glória...
INSETIÇÃO
Hoje me vejo cercado de besouros,
na vida coletiva e fervilhante
das capas de quitina, gorgulhante,
a massa insetiforme destes mouros
que invadem minha península gigante:
são negros estes mestres de tesouros,
elipses que morrem aos estouros,
explodindo qual foguete borbulhante.
E tais escaravelhos me rodeiam
como amuletos de faraós, potentes,
mas logo morrem ao contato com a luz.
E são assim os sonhos que incendeiam:
Quando parecem ser mais resistentes
é quando sangram em agriazedo pus.