SANGUE COAGULADO & MAIS

sangue coagulado I

ela partiu, num avião a jato

para não mais voltar e nem sequer

encontrarás seus restos ou qualquer

peça de roupa, ao menos um sapato.

sumiu assim, no seu maior recato,

em cremação sutil, como quem quer

evolar-se para sempre, luz-mulher;

suas cinzas peço ao vento, em desacato.

perdeu-se pelas nuvens, pura flor,

os fragmentos fizeram-se botões

e fecundaram as algas pelos mares.

e nem desceu do céu, por tanto ardor,

consumida num lago de emoções,

acrisolada no espanto dos pesares...

sangue coagulado II

a morte serve como roupa feita

ou sapatos escolhidos à medida.

(quando nos vamos, ainda têm guarida

nos guarda-roupas, em poeira de desfeita.)

a morte nos aguarda e nunca peita

aceitará para apressar a lida;

(nunca nos leva antes, desmedida

que seja a ânsia da alma em ser aceita.)

porque a bênção final dessa sentença

que, mais cedo ou mais tarde, nos é dada,

recompensa não é e nem castigo

pelo que aqui fizemos, mas há crença

de que a ampla extensão desta jornada

provém de culpas no celeste abrigo.

sangue coagulado III

tenho pena de mim. não do que sou,

mas do que fui. de quem andou perdido,

pelas termas do medo. mal-querido,

o menino solitário, que tomou

para amigos os livros que ganhou,

as figurinhas dos álbuns, o incontido

combate de soldados de papel, mantido

sobre o assoalho do quarto que habitou.

como de scrooge, foram meus companheiros

os personagens dos livros de aventuras,

televisão não havia ou fliperamas.

acostumado a ser mal visto por terceiros,

protestando e perseguido por loucuras,

desajustado como um peixe sem escamas.

sangue coagulado IV

será difícil ler o que escrevi

sobre este fundo impresso. todavia,

se me esforçar, a marca deixaria

sobre tais letras, o mais claro que puder.

pois foi difícil. toda a vida convivi

com duras marcas que meu pai fazia,

por religião ou política eu sofria,

sem por quaisquer delas me prender.

talvez devera ter brigado com meu pai,

fugido para longe, até com fome

e sem conforto, criado a própria imagem.

mas quem na timidez tão forte vai,

de contemplar o mundo se consome

e perde a vida por falta de coragem!...

sangue coagulado V

já sei que não virás. passou-se o dia

em que podia te esperar... e nada!

nem sequer uma desculpa esfarrapada,

para atenuar a ausência que sofria...

não duvido que quiseste o que eu queria

e que algo te impediu esta jornada...

sei que a distância daqui à tua morada

é a mesma e visitar-te eu poderia...

contudo, te esperei. plena certeza

eu tinha inicialmente de tua vinda,

que o adiamento aos poucos diluiu...

até tornar-se presença de aspereza,

na solidão que sei não será finda

pela esperança que hoje me fugiu...

sangue coagulado VI

posso dizer somente que a esperança,

mais uma vez, mostrou-me sua ironia,

por tudo que, no antanho, prometia,

e por nada que meu presente alcança.

fiquei sozinho, sem pagar fiança,

fazendo amor com a saudade e a nostalgia,

que não eram as amantes que eu queria,

mas que me são fiéis desde criança.

quem eu queria não chega e sinto mais

essa incerteza que provém da ausência,

do que essa ausência que surge da incerteza.

para embarcar na galera do jamais,

eu remarei, talvez com imprudência,

na busca inútil de outro sonho de beleza.

VERFREMDUNGSEFFEKT III

EVITO EXPOR-ME AO SOL. ANTIGAMENTE,

PEITO ABERTO E COSTAS NUAS, ORGULHOSO,

AO CLIMA ME ENTREGAVA. ERA VAIDOSO

DOS MÚSCULOS CRIADOS, NUM INGENTE

ESFORÇO, COM MACHADO; TÃO FREQUENTE,

QUANTO COM PICARETA. EM PODEROSO

GOLPE LANÇADO AO LONGE, O ARENOSO

CONTEÚDO DA PÁ LANÇAVA ARDENTE.

PORÉM MUSCULAÇÃO EU NUNCA FIZ,

POR ISSO ME ORGULHAVA: MEU TRABALHO

DESENVOLVERA-ME O TRONCO, EM RECOMPENSA.

MAS DEPOIS, O SOL FORTE NÃO MAIS QUIS:

TORNOU-SE PERIGOSO E, SE HOJE EU MALHO,

SÃO SÓ OS TEXTOS QUE O COMPUTADOR ADENSA.

VERFREMDUNGSEFFEKT IV

PERDI MINHAS ILUSÕES, NÃO A ENERGIA:

NADA SERÁ LANÇADO NO MEU COLO.

SENÃO PELO TECLADO, EM QUE EU ESFOLO

OS DEDOS, EM PERPÉTUA ZOMBARIA.

PERDI AS ILUSÕES, NÃO A ESPERANÇA

DE QUE AMOR ME LEVE OU A MELODIA

AO PORTO ACOLHEDOR QUE MAIS QUERIA

E NÃO APENAS À LABUTA SEM POUPANÇA.

TALVEZ UM DIA PENSE NO CONFORTO:

NÃO TENHO TEMPO PARA ENVELHECER,

SOU UM LACAIO DA MISTIFICAÇÃO.

OURO DAS FADAS EU TIVE EM MEU ABORTO:

POR TODO O MEU ESFORÇO A RECEBER,

NÃO MAIS QUE PALHA EM TROCA DE EMOÇÃO.

VERFREMDUNGSEFFEKT V

O QUE MAIS QUERO É COISA QUE NÃO TIVE:

PODER CONFIAR EM TI INTEGRALMENTE,

COMO JAMAIS CONFIEI EM QUALQUER GENTE,

NEM NAS MULHERES COM QUEM NA VIDA ESTIVE.

PORQUE AS PESSOAS COM QUEM SE CONVIVE

PENSAM PRIMEIRO EM SI, NATURALMENTE,

E ASSIM FAÇO TAMBÉM; MAS DIFERENTE

DOS DEMAIS COM QUEM AGORA EU PRIVE,

SEMPRE PENSO NO QUE DE MIM PRECISAM:

SOU COMO O TROLL DA LENDA, TÃO TEMIDO,

QUE NÃO COMIA CARNE. E NEM EU COMO.

E ASSIM ESQUEÇO SEMPRE QUANDO PISAM

NAS CICATRIZES COM QUE TENHO VIVIDO

E O QUE TIRAM DE MIM NUNCA RETOMO.

VERFREMDUNGSEFFEKT VI

CHEGO A TER MEDO DA FELICIDADE

QUE OS DEUSES ME CONCEDEM, A SORRIR,

DENTRO DE MIM A VOZ OUÇO INSISTIR,

QUE É UMA ZOMBARIA E TRAZ MALDADE,

POIS QUANDO OS DEUSES QUEREM, NA VERDADE,

E POR CAPRICHO QUALQUER, VÊM-NOS PUNIR

É ISSO QUE FAZEM, TALVEZ POR ILUDIR,

TALVEZ FINGINDO ATÉ EQUANIMIDADE...

DE CERTO MODO, É UM ATO DE PIEDADE,

POIS NOS FAZEM FELIZES, ANTES DE ARRANCAR

DE NOSSO PEITO, A QUANTO MAIS AMAMOS.

POIS PODERIAM, SIMPLESMENTE, A VELEIDADE

DE NOSSOS CORAÇÕES DILACERAR,

NESSES MOMENTOS DE QUE MAIS NOS ORGULHAMOS.

tarântulas fiéis I

estranho é o piso do hospital. Aranhas

escondem-se nos cantos e suas teias

recobrem tijoletas, marcas feias

que já caçaram tantas artimanhas.

Não sei quem fez escolhas tão estranhas:

não é que sejam feias, são enleias

a prender-nos os pés, imóveis peias,

as teias verdes, em impressões tacanhas.

Diziam, quando ergueram o hospital,

que quem entrava, ficava emaranhado,

para não sair mais... teias famintas!...

Há quantos anos que não me fazem mal!

Aranhas mudas, inertes, no isolado

urdir de teias feitas só de tintas...

tarântulas fiéis II (2007)

a dama clara de negros cabelos

decidiu ser estéril, mas ansiando

cuidar de um filho, com gentis desvelos,

e por solteira ser, não desejando

adotar um nenê, tomou a peito

apossar-se de um jovem, procurando

adquirir sobre ele algum direito,

o seu amor de mãe assim mostrando.

achou nele o que em filho não podia

e assim uniu-se com um adolescente,

que se maravilhou com a situação,

por certo tempo... feliz foi, todavia,

até que ele cresceu e, indiferente,

partiu-lhe novamente o coração.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 23/09/2011
Código do texto: T3237353
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