FOME DE CARTÕES I & MAIS
fome de cartões i
antes das aulas, é hora de luxúria,
correndo atrás de restos de papel,
enquanto espero o meu dever, rebel,
nesses momentos de total incúria.
transformo estes cartões em plena fúria,
que me acomete, num ardor de fel:
perco minhas horas, sem me dar quartel,
transmito artes de paixão espúria.
ninguém me traz amor e nem sequer
eu busco admiração. É um desperdício,
que um fiapo não me traz de recompensa.
apenas fico preso em tal mister,
sem trabalhar de fato, em meu ofício,
a rascunhar mais versos como ofensa!...
fome de cartões ii
cortei de uma só vez esse rabisco
que iniciara já fazem alguns dias:
não foi que rejeitasse as elegias,
somente as encarasse como cisco.
em outro fragmento de papel,
sem nada impresso de melhor leitura,
eu me deleito a decifrar a agrura,
entre os espaços escritos a granel.
e nem é que precise. é por desplante
que rascunho estes versos, ao acaso:
em qualquer folha que se me apresente.
não sou maomé, que gravou o seu descante
em palmas ou até cacos de vaso,
por não perder o que lhe vinha à mente.
fome de cartões iii
mal acredito que tenham combinado
matar a aula, sem nem me avisar...
tive despesas, deixei de trabalhar
e vim aqui sem ter ninguém achado...
seja o que quer que tenha se passado,
ninguém se recordou de me contar...
perdi meu tempo, precisei gastar
e fiquei só no meu canto abandonado!
somente agora alguém vem me dizer
que minha turma está fazendo prova
com outro professor... portanto, fico
desapontado assim em meu dever:
não tenho aula, a perda se renova
e apenas nestes versos abro o bico!...
fome de cartões iv
bebi leite de figo e pão de esponja,
farelo azedo de mandioca amarga:
tanta derrota que minha vida alarga
e só me incita a que lutar prossiga.
sempre tratei a vida como monja,
mas o destino tanta vez embarga:
nunca neguei-me a suportar a carga,
embora, às vezes, mal e mal consiga.
mas sempre eu insisti, nesse apesar,
que me levou a combater poréns,
perdido na floresta do entretanto,
sobrando sempre força de cantar,
para insistir ainda nos tambéns,
em que recuso a derramar meu pranto.
arando os mares i
em torno a nós traçamos cinco círculos:
o mais íntimo de todos é o do ser,
depois alguém que nos reparte o seu viver
e então vêm a família e os amigos...
o quarto círculo terá vários rótulos:
pode ser o trabalho ou o conviver,
mesmo o lugar em que vamos a comer;
muitos estranhos e uns poucos inimigos.
e, finalmente, abrimos para o mundo
a nossa intimidade mais social,
nesse incluímos toda a humanidade,
no quinto círculo, de amplidão profundo,
em que encaramos o globo natural
e nos abrimos para a eternidade.
arando os mares ii
não podemos limitar as amizades
àqueles que gostamos. afinal,
o mundo é amplo demais para a total
exclusão das demais comunidades.
mas preferimos certas etnicidades
trazer para mais perto, em semental
ágil e vigoroso, em rubro sal,
abrangendo numa só as fraternidades.
se julgarmos ser apenas importante
o nosso círculo interno, descartamos
mil avenidas de cooperação,
mas se incluirmos nesse mesmo instante
todos quantos encontrarmos, completamos
o grande círculo da aproximação.
arando os mares iii
somos mais próximos do que lhe parece:
através dos milênios, cruzamentos
foram reunidos ao longo dos momentos
de paz e guerra, de maldição e prece.
enquanto a longa teia se entretece,
genótipos se juntam, fragmentos
penetram os carnais integumentos,
a vida surge e a humanidade cresce.
e nesses mares, não rejeites teu irmão,
tão só porque pareça diferente;
tais diferenças são milimetrais...
bem lá no fundo, cada coração
bate no mesmo toque complacente
e os glóbulos vermelhos são iguais.
arando os mares iv
pois como são pequenas
as grandes diferenças,
as vastidões extensas,
saias de palha ou penas,
talvez kilts de lã,
as calças e bombachas,
albornozes ou as faixas,
um turbante ou iatagã!
por baixo de tantas toucas,
ou por dentro dessas roupas,
toda pele é uma só.
todos tem o seu umbigo,
pois eu nem sequer consigo
esquecer que já fui pó.
arando os mares v
não espero ser feliz. felicidade
é algo que se dá e distribui.
é mesmo assim que a religião instrui:
"amai-vos uns aos outros", em verdade!
e, desse modo, o amor da humanidade
(de cujo amor até empós eu fui)
se reduz lentamente e assim inclui
apenas os amigos, o bairro, uma cidade...
não espero ser feliz. mas sei que devo,
se possível me for, dar do que tenho
e provocar sorrisos temporários...
então demonstro quanto amor eu levo
e assim me esforço, no maior engenho,
a recolher em mim sorrisos vários...
arando os mares vi
embaixo da cidade existe a terra
e existe terra embaixo da floresta;
existe terra sob toda a festa
e terra existe sob toda a guerra.
embaixo desta vida, que se emperra,
existe terra e quanto nos atesta;
que a última verdade nos infesta
e é a terra que tal vida nos encerra.
pois somos todos filhos do planeta,
que um dia nos consome, em plenitude
e fecundamos nossa mãe em tal incesto.
nessa terrível ejaculação secreta,
em que toda consciência, suave ou rude,
se dilui e se desmancha neste gesto.
VERFREMDUNGSEFFEKT I (2008)
(Efeito de Distanciamento)
EU DEVANEIO MUITO. ENTÃO MINHALMA
SE PERDE POR AÍ. O CORPO DEIXA
E PERCORRE DO ASTRAL A PURA ENDEIXA
EM BUSCA DE OBTER A MELHOR PALMA.
O CORPO FICA MUDO NESSA CALMA:
RESPIRA SEM CESSAR E NÃO SE QUEIXA;
ÀS VEZES FICA IMÓVEL E A MADEIXA
ENROLA PELOS DEDOS E SE EMBALMA.
É QUE A ALMA, PERDIDA NOS CAMINHOS
DESSA MEDITAÇÃO DE ESTRANHO VEZO,
NEM SABE MAIS QUE SENDA RETOMAR.
POR ISSO DIA E NOITE, SEM CARINHOS,
ESCUTO MÚSICA DE ÓPERA E INTERMEZZO
QUE A ALMA ESCUTA E PODE RETORNAR.
VERFREMDUNGSEFFEKT II
JÁ ESTÁ EM TEMPO DE EXUMAR MEUS OSSOS,
PORQUE ESTIVE ENTERRADO MUITOS ANOS,
SEM BUSCAR MEU PRAZER E OS DESENGANOS
FORAM MORTALHAS DE TECIDOS GROSSOS.
MEUS SONHOS ENTERREI EM TANTOS FOSSOS,
CONFORMADO A VESTIR ESPESSOS PANOS,
DE MEUS DEVERES, MALQUERER DE HUMANOS,
LANÇANDO MEU DESEJO EM NEGROS POÇOS.
QUERO ESTE ANO ABRIR MINHA SEPULTURA
E TIRAR PARA FORA MEUS DESPOJOS,
PARA EMPREGÁ-LOS NO QUE FOR POSSÍVEL.
NOS OSSOS SECOS INSUFLAR DOÇURA,
BEBER DAS TAÇAS AO FUNDO DE SEUS BOJOS
E USUFRUIR DO QUE PAREÇA INCRÍVEL.